Face Magazine - Ralf Hutter -
1987
De que galáxia vêm realmente
esses primitivistas da era pós-computador? De Düsseldorf ou de alguma zona de
um tempo-espaço futuro? Mais ou menos à altura do oitavo compasso de uma
interpretação energética de "The Model" - disponível numa fita
cassete verde-limão editada pela Companhia Saha Kuang de Discos e Fitas - a
familiaridade é recortada em pedaços de maneira irreversível.
O andamento é desacelerado para
34 batidas por minuto, o órgão elétrico volta poucas décadas atrás, algo entre
um quase Kraftwerk, os Seeds ou os Mysterians. Começa o vocal.
A cantora veste uma blusa branca
com partes recobertas por pele de carneiro e uma gola de mandarim, uma saia
branca, um brinco preto e outro branco.
Ela canta em tailandês. E a razão
para esse drástico transplante do Kraftwerk 78 na música pop tailandesa de 85 é
pura e simplesmente um mistério. Ralf Hütter veste um blusão de couro preto. Quando
o tira, aparece uma jaqueta preta. Camisa preta, gravata preta, calças pretas,
sapatos pretos. As meias são brancas. O cabelo, outrora todo preto, agora está
ficando cinza no topo. Atento, ele se inclina um pouco à frente para ouvir
melhor esta versão singular de sua música. "É muito bom", diz ele,
num inglês monossilábico e divertido. "Gosto disso. Deveríamos ir à Tailândia".
Kraftwerk:
A casa de força original, os condutores,
os operadores, os fetichistas do som. Durante aproximadamente uma década e meia,
a banda vem criando música de dança em Düsseldorf, permitindo às máquinas que
falem por si mesmas. "Me lembro que
tocamos numa festa, num centro de artes qualquer de Düsseldorf, em 71",
diz Ralf. "No início, não éramos um grupo fixo e os bateristas viviam sendo substituídos porque ficavam apenas
batendo e não mexiam com a eletrônica. 'Não! Tire a mão dos meus instrumentos!' Um
dia, tínhamos aquele show no centro de
artes e eu estava com aquela antiga bateria eletrônica.
A certa altura, deixamos o
instrumento ligado com alguns ecos e um pouco de feedback, descemos do palco e
nos juntamos aos dançarinos. Continuou assim durante uma hora ou mais."
Kraftwerk é sexual, concentração pura, comestível. Auto-controle com humor. Expressão
através da proporção. Emoção através do distanciamento. Inspiração através do
trabalho. "As máquinas dançam, por assim dizer", diz Ralf, "e a
repetição, o ritmo vão se acumulando. Mas isto é uma ficção estética" Não
há uma diferença enorme entre o Kraftwerk de 'Trans Europe Express', em 1977,
'The Man-Machine', em 1978, 'Computer World', em 1981, 'Tour de France', em
1983, ou 'Eletric Café', em 1986.
Com um classicismo devotado, a
banda de Hütter, Florian Schneider, Karl
Bartos e Wolfgang Flür alinhou e realinhou uma coleção em miniatura de melodias
e pulsações. 'La Côte d'Azur et Saint Tropez, les Alpes et les Pyrénées, de
estação em estação, Düsseldorf City, encontro com Iggy Pop e David Bowie, Negócios,
Números, Dinheiro, Gente, estou adicionando e subtraindo. Quando apertada, uma
tecla especial toca uma melodia singela, ein, zwei, drei, vier, fünf, sechs,
sieben, acht, ichi, ni, san, shi, amor de computador, disco este número para
marcar um encontro.
O número que você discou foi desligado. Boing Boom Tschak, Boing Boom
Tschak'. O assunto principal é a filosofia. Porém, mais intensa é a
obsessão pela pureza dos sons. Como Fragornard pintado sobre cetim, Kraftwerk
tempera seu apetite pelo som a favor do que é contemporâneo, social e
sutilmente sugerido. "O som não os seduz do ponto de vista da
forma?", pergunto. "Mm", concorda Ralf. "Seu principal
problema?", sugiro. "Não. Problema, não. Objetivo", diz ele,
"porque a forma não nos preocupa tanto assim". Será essa a razão da
forma "viajante"? "Autobahn", "Musique Non Stop",
"Europe Endless", "Trans-Europe Express", "Tour de France"... "Sim",
concorda. "Deixa-se levar.
Senta nos trilhos e ch-ch-ch-ch-ch. Continua indo.
Aumente e diminua o volume suavemente, em vez de se mostrar dramático ou tentar
implantar dentro da música uma ordem lógica, o que parece ridículo. O fluxo é
muito mais adequado. Em nossa sociedade, tudo está em movimento. A eletricidade
circula, através dos cabos, e as pessoas - bio-unidades - viajam de cidade em
cidade. A certa altura, elas se encontram e então, por que a música deveria
permanecer em compasso de espera? A música é uma forma de arte fluente" Isto
é futurismo inócuo.
O italiano Filippo Marinetti
escreveu bem no início do século: "A energia dos ventos distantes, as rebeliões
do mar, transformadas pelo homem em muitos milhões de quilowatts, irão penetrar
em cada músculo, artéria e nervo da península, sem precisar de ligações
controladas por teclados com uma abundância fertilizante que pulsa entre os
dedos dos engenheiros".
Com seu jeito afetuosamente
rebuscado, ele também sonhava em alta velocidade imaginando o Danúbio correndo
"em linha reta, a trezentos quilômetros por hora", e antecipando a
deificação dos heróis do esporte como Fangio ou Bernard Hinault, e, ainda,
antevendo a destruição de casas para dar lugar a estradas e aeroportos. Da
mesma forma que o Kraftwerk se apropriou da arte condenada da poesia sonora ou
fugiu da teoria para transmutar o metal básico da música eletrônica alemã em
ouro, o grupo utilizou com muito êxito as novas tecnologias e as batizou no
mainstream. As sociedades industriais estão hoje no mundo inteiro", diz
Ralf. sugere ele, é ter uma presença artística, também. Não apenas grandes corporações,
negócios, números, dinheiro, gente, mas arte, música". Recorrendo às
inovações ao mesmo tempo profundas e triviais da proliferação tecnológica da
sociedade, faz parte dos seus objetivos criar uma nova volksmusic (música
popular, em alemão).
Janeiro de 1984. Estou com Afrika
Bambaataa. Sentamos perto do piano de cauda, no estúdio Shakedown Sound, de Arthur
Baker. "Tivemos que pagá-los", admitirá Baker mais tarde - porque
flagraram Bambaataa, Baker e o Soul Sonic Force chupando "Numbers" e
"Trans Europe Express" para fazer "Planet Rock". O que Bambaataa sentiu quando "Trans
Europe Express" foi lançado? Com uma rara demonstração de entusiasmo, ele
me conta, "eu disse, desculpe a expressão, 'isso é uma bosta
esquisita'".
A performance do Kraftwerk no Ritz de Nova York, em 1981 tinha sido histórica. "Voltaram
quatro vezes ao palco e o público não queria deixá-los sair", disse Bambaataa.
"É um grupo incrível de ser ver -
nem que seja pelos computadores, e tudo que conseguem tirar deles.
Eles pegaram algo como uma calculadora
e acrescentaram outra coisa nela - o pessoal apertando e tocando como se fosse
música. Era funky". Isto o levou a refletir sobre os objetos do dia-a-dia,
como os telefones, sob o ângulo de suas propriedades sonoras. Conto essa
história a Ralf Hütter. Ele sorri. "Fizemos isso mesmo. Não sou um musicólogo",
diz ele, "mas acho que a música negra é muito ambiental. Muito integrada
ao estilo de vida.
Você pode fazer sua
rotina..." Ele esfrega a mesa com força e sugere que Kraftwerk também é
bom para essa função. "Quando começamos", diz ele, "a eletrônica
era ligada tanto à pesquisa - universidade, gordos títulos acadêmicos - quanto
aos programas espaciais. Nosso negócio sempre foi incorporar o dia-a-dia. Na
capa de Autobahn está o meu velho Volkswagen cinza, e o disco contém os sons e
os barulhos existentes num raio de 200 a 1.000 quilômetros de uma
auto-estrada". Ele bipa o código do seu relógio digital de pulso preto e
ri.
Até certo ponto, isto foi uma
reação contra a cultura acadêmica burguesa e a tirania da teoria. "Para
nós, é algo que chamamos em alemão de 'intellektual überbau’, diz Ralf. Na sequência, passamos a discutir o conceito
de 'überbau', a construção intelectual - tão vasta. Para nós, nunca foi um
problema. Somos filhos dos trenzinhos elétricos para montar, dos pequenos
'elektrobaukaste'n - a geração do pós-guerra com suas caixas de brinquedos em
miniatura. Você se torna rapidamente infantil com esse tipo de abordagem"
Ralf Hütter e Florian Schneider
se encontraram pela primeira vez num curso de jazz e improvisação, organizado
pelo Conservatório de Düsseldorf; Ralf, com seu órgão elétrico, e Florian, com seus instrumentos
de sopro elétricos e seus aparelhos de
eco. Eles eram membros do que Ralf descreve como "a geração sem pais".
Nascemos depois da guerra", diz ele, "um fraco incentivo para
respeitar nossos pais. A herança germano-austríaca de Beethoven e Mozart ainda
tinha peso e o mundo pop do final dos anos sessenta também era restritivo, à
sua maneira", observa Ralf, "que nem Woodstock. Você era obrigado a
ver as coisas de um certo jeito. Tudo era muito estreito e pré-programado.
Passamos às escondidas pela porta proibida".
Os dois tocaram em vernissages de
galerias de arte na região industrial da Ruhr - o circuito Colônia/Dortmund/Essen/Düsseldorf.
Por vezes, eles se juntaram ao movimento
emergente do free j como Karlheinz Berger, Gunter Hampel e Peter Brötzmann.
"Nunca fizemos compactos de três minutos", conta Ralf, talvez sem necessidade.
"A música era longa, construtiva e vibrante". Eles também encontraram
a vanguarda americana, percorrendo um circuito semelhante ao das galerias de
arte: LaMonte Young, que construíra em
1969 um ambiente sonoro contínuo em osciladores de ondas senoidais durante 13
dias, na galeria Heiner Friedrich, de Munique; ou Terry Riley, o californiano
místico cuja composição, "In C", repetitiva, enlouquecedora e
contagiante, estava chamando as atenções de muitos setores da música.
Puderam também ver Stockhausen em ação,
em Colônia, executando ao vivo sua própria obra. Naquele tempo, todos falavam
de Música do Mundo (World Music). Uma das exibições paralelas nos jogos olímpicos
de Munique, por exemplo, foi uma grande apresentação dedicada à influência da
cultura exótica nas artes contemporâneas. LaMonte Young numa sala, músicos
gamelenses da corte de Java numa outra, misturados com um pouco de esporte e o
terrorismo internacional como evento principal.
Para Hütter e Schneider, a
oportunidade de ver e ouvir músicos da Ásia ou da África em ação os levou a
formular perguntas vitais. "Qual é
a nossa cultura étnica?", diz Ralf. "Será que ela foi explodida? Nós até incluímos barulhos de bombas na nossa
música, certa vez. O que é o nosso som? Qual é o nosso ambiente? Sou
mudo? "No estúdio Kling Klang, de Düsseldorf, há despensas de tecnologia
histórica; Kraftwerk 70, Kraftwerk 75,
Kraftwerk 81, Kraftwerk 87. "Nós o chamamos de jardim eletrônico",
diz Ralf, "coisas novas chegando, outras sendo reconstruídas. O velho
misturado ao novo, dependendo da fase. Fazemos uma mistura quase que orgânica.
Ainda estamos utilizando aquela
antiga caixa de ritmos para coquetel musical e, de repente, num outro extremo,
temos o Synclavier. Nosso instrumento é o estúdio. É o nosso pequeno
laboratório, nosso 'elektrospielzimmer'. De novo a discussão linguística.
"Sala de brinquedos?", ele pergunta. Agora, Kraftwerk é uma fonte. Versões
de suas composições no Japão e na Tailândia, uma inspiração para o hip hop do
Bronx, versões em diversas línguas dos seus discos - como a edição espanhola de
"Electric Café. Música do Mundo pode crer. O que mais mudou? ,pergunto. Com
a memória digital, veio a liberdade de passar mais tempo experimentando, sugere Ralf. O pós-computador
é o novo primitivismo", diz ele. Outra mudança está na qualidade do som
que agora pode ser alcançada. Nos últimos cinco anos foi possível imprimir ou
projetar mais esculturas de baixa frequência, o que não era possível antes. Tem
sido simplesmente um big boom... ou uma camisa-de-força", acrescenta, com
um pouco de desgosto.
"É a arte da tecnologia de estúdio.
Você pode esculpir o som de 20 até 20.000 hertz. A gente burilava um som específico
durante uma enorme quantidade de tempo. Com certos sons, somos fetichistas. Um faz
kling e o outro acrescenta um klang. Modelamos isso até o extremo." Sobre
as vozes em "Boing Boom Tschak", "Tecno-pop" e
"Musique Non Stop", ele fala da presença espetacular que elas têm.
"Elas se mesclam. São como
talking drums. Percussão. Mais ainda pode ser feito. Me sinto como se
estivéssemos apenas começando". Vocês escutam outras músicas?, a minha
última pergunta. "Não", diz Ralf. "Talvez quando passeamos por
aí. Às vezes, quando saímos para dançar. Outras vezes, no rádio. Não tenho
aparelhagem de som em casa. Escutamos o silêncio. Escutamos músicas fictícias
em nossa mente. Pensamos música".
Interview to David Top - Face Magazine