domingo, 3 de março de 2013

Ele, Robô.





No fundo do baú, havia o funk. A batida era perfeita e ainda soava atual, nem parecendo ter mais de 30 anos. Karl Bartos decidiu, então, não apenas rebatizá-la, mas criar uma nova música em torno dela.  Inventou uma melodia no sintetizador, fez um arranjo de cordas e completou com sua própria voz, transformada por um vocoder em algo robótico.

Assim, a base de “Numbers”, música do disco “Computer world”, lançado pelo Kraftwerk em 1981, e considerada uma das pedras fundamentais no surgimento do hip-hop e do nosso baile funk, se transformou em “Rhythmus”, uma das faixas de “Off the record”, o primeiro trabalho de Bartos, pioneiro da eletrônica e dissidente do lendário grupo alemão, em dez anos. — Sei da importância dessa batida para o som funk do Rio e até hoje fico admirado com essa conexão — conta Bartos, por telefone, falando de Dusseldorf, onde mora. — Poderia tentar filosofar sobre como uma coisa levou à outra, mas prefiro pensar no lado estritamente musical.

É uma levada bem econômica, direta, que pode ser ouvida repetidamente sem nos fazer enjoar. Talvez tenha sido esse o motivo da sua versatilidade.

O curioso é que, quando fui compor “Rhythmus”, pensei em fazer algo parecido com uma bateria de escola de samba, jogando várias batidas em cima da original. Mas não ficou tão bom quanto eu imaginava, e acabei tentando manter tudo o mais minimalista possível. Na verdade, os primeiros compassos de “Rhythmus” são praticamente idênticos aos de “Numbers”.


EM CARREIRA SOLO DESDE 1990

Em tom de reciclagem, “Off the record”, que chega às lojas no próximo dia 15, reúne rascunhos que Bartos acumulou desde a segunda metade dos anos 1970 até 1993 — melodias, batidas, riffs, pequenos trechos vocais etc. —, inicialmente em fitas cassete e depois nos mais variados formatos digitais, de DATs a CDs, passando por disquetes e arquivos no computador. Boa parte desse material, que ele chama de “diários musicais”, abrange o período em que ele fez parte do Kraftwerk, como tecladista e percussionista, na fase áurea do grupo, de discos como “Radio-Activity”, “Trans Europe Express”, “The Man Machine” e “Tour de France”. Ele saiu da banda em 1990 e desde então segue carreira solo. Além disso, colaborou com artistas como Johnny Marr e Bernard Sumner, investindo também em trabalhos audiovisuais, como os projetos Crosstalk e Live Cinema.

Em 2010, a gravadora independente alemã Burea B sugeriu que Bartos lançasse um álbum com esse material, até então intocado por ele. Após uma negativa inicial, Bartos decidiu fazer uma contraproposta, subvertendo o clima de revival da proposta inicial.— No início, achei a ideia sem sentido, afinal eram rascunhos pessoais, uma forma que encontrei para avaliar minhas ideias e meu trabalho ao longo dos anos — conta ele, que se apresentou no Brasil em 2008, como DJ/VJ. — Mas, aos poucos, entrando em contato com esse material, fui desenvolvendo uma outra ideia: gravar músicas novas criadas a partir dos rascunhos.

Isso acabou se revelando um trabalho fascinante e até certo ponto perturbador, que me colocou em contato com o jovem Karl Bartos que havia dentro de mim.

Foi muito estranho e ao mesmo tempo revigorante, já que tenho 60 anos e não os 20 e poucos que tinha quando fiz alguns desses rascunhos. Tive, então, que combinar a impetuosidade e a ingenuidade daquela época com a racionalidade e a precaução atuais.

Foi melhor que anos de análise. O primeiro single do disco chegou na forma de “Atomium”, lançada no começo de fevereiro. Forma mesmo, já que a música foi inspirada pelo Átomo, monumento criado em Bruxelas, em 1958, pelo engenheiro belga André Waterkeyn, representando uma molécula de ferro. — Esse é um marco para quem mora na Europa, simbolizando tanto a unificação do continente, que viria depois, como também a tecnologia, a ficção científica e a energia nuclear. Tentei usálo como ponto de partida para o álbum, pela minha paixão pela tecnologia e também pela rejeição que temos agora à energia nuclear após o acidente de Fukushima, no Japão — conta Bartos, que tem formação clássica. — Além disso, quando olho o Átomo, por algum motivo penso em Stravinsky e também no filme “Fahrenheit 451”, de Truffaut.

Não por acaso, o primeiro show de “Off the record” vai ser em Bruxelas, no segundo semestre. Na turnê que faremos, cada música vai ter um pequeno filme correspondente, dando sequência ao meu projeto Live Cinema.

Em outra música, “International Velvet”, Bartos homenageia a atriz e modelo americana Susan Bottomly, que fazia parte da trupe de Andy Warhol, freqüentando o estúdio Factory e participando de alguns dos seus filmes. — Sempre fui fascinado por Andy Warhol e pelo ambiente da Factory, com todas aquelas pessoas transitando ao seu redor.

E Susan, além desse incrível apelido, era de uma beleza extraordinária. No fim, acabei embalando tudo em uma gélida composição européia (risos), com uma melodia no mellotron, cordas e uma bateria eletrônica programada de forma bem simples.

Já em “Without a trace of emotion”, Bartos brinca com a expressão que os jornais britânicos e americanos usavam para descrever inicialmente o Kraftwerk. A melodia, diz ele, foi criada na mesma noite em que John Lennon foi assassinado, em dezembro de 1980. — Foi outro momento estranho de rever esses rascunhos, já que essa melodia me transpôs para aquela noite, quando vi na televisão a notícia da morte de Lennon.

A música tem esse incrível poder. Sobre a letra, ela faz referência à forma como éramos chamados, inicialmente como modelos de vitrine e depois como robôs, sem emoção alguma. Foi bom me sentir uma máquina novamente.

Tanto que me apresento assim na capa do disco. Apesar de ter saído da banda por discordar dos rumos que o Kraftwerk estava seguindo, Bartos garante que mantém relação com seus integrantes, inclusive com Ralf Hütter, o único remanescente da formação original. — Somos todos amigos. Troco emails com Ralf e fiquei muito feliz com o sucesso dos shows retrospectivos em 3D. No fim das contas, ficou provado que não fazíamos uma música tão sem emoção assim.




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