Após quase duas décadas como membro do Kraftwerk, o bom e velho Wolfgang Flür está de volta com um novo projeto, o Yamo, e está aprendendo a amar a vida depois dos robôs...
Düsseldorf está situada entre as curvas e voltas do rio Reno, no coração comercial e industrial do noroeste da Alemanha. Diferente de muitos centros puramente industriais ao redor do mundo – como Detroit, Milão, Roterdã ou Bilbao – Düsseldorf é uma cidade linda e extraordinariamente elegante, cheia de amplos bulevares arborizados, com uma arquitetura magnífica e um ambiente cosmopolita refinado.
Mas, claro, nas últimas três décadas, essa cidade teve grande importância para os fãs de música eletrônica por um motivo bem diferente. Alguns dos discos eletrônicos mais influentes de todos os tempos (Autobahn, Trans Europe Express, The Man-Machine e Computer World) vieram de um grupo que tirou seu nome de uma usina elétrica que ainda hoje permanece de pé, não muito longe, à beira do Reno.
A apresentação do Kraftwerk no Tribal Gathering do ano anterior serviu como lembrete de que nem toda música pop é passageira ou efêmera. Apesar de o grupo não lançar material novo desde 1986, não havia precedentes para o nível de expectativa – e empolgação – gerado por sua apresentação. Talvez isso tenha a ver com o fato de que, por meio do rap, acid house e techno (todos inspirados pelas sinfonias mecânicas dos ciberpioneiros de Düsseldorf), toda uma nova geração tenha descoberto o Kraftwerk.
Mas também parecia que o mundo finalmente tinha percebido que a estranha visão de futuro do Kraftwerk era a que indicava o caminho certo. Mais de uma década depois da aventura psicodélica do Electric Café, saída do estúdio Kling Klang do grupo, os maiores inovadores da música eletrônica finalmente estavam sincronizados com a cena musical que eles mesmos ajudaram a criar.
Mas, quando o Kraftwerk subiu ao palco naquela estranhamente fria noite de maio, o grupo não apresentava a formação clássica que mudou a cara da música pop. Naquele momento, os membros fundadores Ralf Hütter e Florian Schneider estavam acompanhados de dois engenheiros do Kling Klang, Fritz Hilpert e Henning Schmitz, em vez de Karl Bartos e Wolfgang Flür, que haviam deixado o grupo durante o período de inatividade criativa após Electric Café.
A saída de Flür foi algo gradual
Durante um tempo, ele dirigiu um estúdio de design, até que, motivado pelo escândalo da guerra na Bósnia, pensou que a música poderia oferecer uma forma de ajudar. Em 1993, trabalhando com Emil Schult (conhecido como "o quinto membro do Kraftwerk"), escreveu o single beneficente Little Child como uma maneira de chamar atenção para o destino das crianças bósnias, presas em uma carnificina pela qual não tinham culpa alguma.
A formação clássica
Autobahn é o primeiro álbum verdadeiramente moderno e reconhecível do Kraftwerk e, embora ainda restem vestígios de suas inclinações à improvisação, é possível ouvir elementos que antecipam selos como Transmat, R&S e Warp pulsando entre os estranhos ritmos sintéticos de faixas como Kometenmelodie ou Mitternacht.
Para a turnê do Autobahn, o Kraftwerk adicionou mais um percussionista: Karl Bartos, que na época ainda era estudante de música no conservatório Robert Schumann, em Düsseldorf. Flür e Bartos já tinham um projeto paralelo chamado Sinus, e com sua entrada no grupo, a formação clássica do Kraftwerk estava finalmente completa.
Flür: o primeiro baterista eletrônico
Embora o senso pop apurado de Wolfgang (desenvolvido nos anos em que tocava versões) tenha deixado sua marca no estilo improvisador de Hütter e Schneider, sua maior contribuição ao Kraftwerk foi a criação de um aparelho revolucionário.
Graças às suas habilidades de marcenaria, construir a estrutura foi fácil. Com os discos de metal montados na parte frontal e conectados aos circuitos responsáveis por cada som, só faltava descobrir uma forma de acionar os triggers.
A solução veio em forma de duas finas hastes de aço (algo entre uma agulha de tricô e uma baqueta). Ao conectar isso ao circuito original de acionamento, ele descobriu que, ao tocar um dos discos metálicos com a haste, o circuito se fechava e — como num passe de mágica — o som era disparado. Usando as duas hastes como baquetas, ele viu que era possível criar ritmos.
Assim, dez anos antes de o pessoal da Roland sequer imaginar algo como o Octapad, Wolfgang Flür se tornou o primeiro baterista eletrônico do mundo.
A unidade ficou pronta exatamente três dias antes da gravação do programa Aspecte. Por muito tempo, acreditava-se que não havia imagens dessa apresentação, mas recentemente foi descoberta uma fita na qual eles aparecem tocando duas músicas: Heimatklänge e Tanzmusik (ambas do álbum Ralf & Florian).
Invenções e criatividade
O talento de Flür para invenção e design se destacou mais uma vez durante os preparativos para a turnê que seguiu o lançamento de Radioactivity, com a criação de mais um de seus artefatos futuristas para disparar sons de percussão ao vivo. Isso acabou se tornando uma faceta recorrente de seu trabalho no grupo: ele projetou e construiu as estruturas de néon colorido que faziam parte do palco dos shows do Kraftwerk no final dos anos 1970. E, para a turnê mundial de 1981, ele desenhou — e até ajudou a construir, junto com outros artesãos e eletricistas — toda a estrutura cênica.
A imaginação de Wolfgang Flür para criar e inovar era uma característica constante em sua trajetória com o Kraftwerk. Ele passou a se interessar por novas formas de disparar os sons da percussão eletrônica para integrá-los às performances no palco. Sua solução para a turnê europeia do Kraftwerk, no início de 1976, foi extremamente criativa — e, como sempre, à frente de seu tempo.
Ele construiu uma estrutura tubular longa o suficiente para que pudesse entrar nela e instalou uma série de pequenas luzes e sensores fotoelétricos em pontos estratégicos. Assim, era capaz de usar os movimentos do corpo como triggers.
"Funcionava com pequenos feixes de luz", explica. "Eu entrava dentro da estrutura e fazia movimentos com as mãos, como um guarda de trânsito. Cada vez que meus braços interrompiam um dos feixes de luz, um som de percussão era disparado. Movendo-me do jeito certo, eu podia criar um padrão. Nos ensaios, era bem impressionante."
"Às vezes eu queria desaparecer do palco quando os sensores não funcionavam. Você me via lá, rezando para que desse certo. E mesmo quando funcionava, no dia seguinte os jornais traziam manchetes malucas."
Esses são os riscos de ser um pioneiro na música eletrônica. Mas a ideia básica de Wolfgang era tão sólida que outros artistas — de Jean Michel Jarre a Laurie Anderson — acabaram adotando esse mesmo princípio mais tarde.
A saída de Flür e Bartos
Os álbuns que vieram após Radioactivity — Trans-Europe Express, The Man-Machine e Computer World — são provavelmente os discos de música eletrônica mais influentes de todos os tempos. Sem eles, o mapa da música contemporânea seria completamente diferente.
Imagine um mundo sem rap, house ou techno — uma sociedade em que o domínio do rock jamais tivesse sido desafiado pelo pop eletrônico ou pelos hinos criados nos guetos de Chicago e Detroit.
A maioria das bandas lança um álbum de grandes sucessos durante a primavera ou o verão, a tempo do Natal. Mas a versão do Kraftwerk — The Mix — demorou cinco anos para ser concluída. Desde seu lançamento, em 1991, passaram-se sete anos sem sequer um rumor sobre um novo disco.
Esse ritmo dolorosamente lento acabou gerando consequências. A saída de Wolfgang Flür veio pouco antes da de Karl Bartos, que deixou o grupo pouco antes do lançamento de The Mix. Os dias da formação clássica do Kraftwerk haviam chegado ao fim.
Um novo projeto: Yamo
Após seu retorno à cena musical com o single Little Child, Wolfgang passou a trabalhar nos estúdios Rheinklang em Düsseldorf, cujo dono era o ex-integrante do Rheingold, Bodo Staiger (curiosamente, Karl Bartos havia trabalhado com outro membro do Rheingold, Lothar Manteuffel, em seu projeto pessoal, Elektrik Music). Foi então que conheceu Andy Toma, do grupo Mouse on Mars, e iniciou uma relação de trabalho especialmente criativa.
"Eu estava trabalhando em uma música chamada My Inner Voice", explica Wolfgang. "Gostava do tema, mas não estava satisfeito com a mixagem. Então Andy entrou no estúdio (naquele momento eu não sabia quem ele era) para buscar algo e nos apresentaram.
Pouco depois, ele me ligou. Ele lembrava que eu não estava satisfeito com os níveis, então havia feito um remix. Peguei um táxi e corri até o estúdio dele — e adorei o que ouvi. A partir daquele momento soube que havia química. Na semana seguinte, entramos em estúdio e criamos outras duas músicas."
O estúdio de Toma é centrado em um Atari com Cubase, mas as semelhanças com qualquer estúdio comum terminam aí. Toma foi produtor de rap e depois trabalhou compondo música para a TV a cabo antes de formar o Mouse on Mars com Jan Werner. Parece que cada marco que ganhou com a música foi reinvestido diretamente no estúdio.
A sala de controle é dominada por uma mesa Soundcraft Sapphire de 44 canais e exibe uma seleção impressionante de sintetizadores, efeitos e processadores, incluindo algumas raridades como o curioso Moog Parametric EQ e um velho sintetizador sub-harmônico DBX dos anos 70. "Eles eram usados em discotecas para reforçar os graves dos discos, mas no estúdio usamos para criar frequências graves bem interessantes."
Yamo, o projeto de Wolfgang, começava a tomar forma. Além disso, o parceiro de Andy no Mouse on Mars, Jan Werner, e outro amigo, Michael Grund, também se juntaram ao projeto. "Ele se sentava num canto e criava patches e sequências estranhas no Moog, e passava partes da voz do Wolfgang por filtros", lembra Andy. "Mantemos um velho sequenciador caseiro que usamos com o Moog e que produz ótimos resultados. Usávamos muito o Nord Lead, além de todas as nossas drum machines. Às vezes amostramos coisas a partir delas, e outras vezes Wolfgang tirava sons do Octapad."
Yamo (uma palavra criada por Flür que significa “a alegria da vida”) também contou com contribuições de uma série de produtores e artistas como Donna Regina e a voz clássica de Barbara Uhling-Stollwerck. O álbum resultante, Time Pie, é uma mistura maravilhosa e estranha de eletrônica cheia de fios e ritmos profundamente sincopados que os fãs de Kraftwerk reconhecerão instantaneamente. Mas, como aponta Wolfgang, não é um disco sobre despersonalização ou homens como máquinas; é um disco sobre a riqueza da vida — o significado literal de Yamo.
Os sentimentos pop delicados ainda estão lá, é claro, em faixas como Stereomatic (para a qual Emil Schult, colaborador do Kraftwerk, dirigiu um videoclipe fantástico) e Time Pie. Mas desta vez o que cativa são as paisagens sonoras sutis e o surrealismo narrativo da voz de Wolfgang. Imagine um Kraftwerk sob efeito de cogumelos alucinógenos ou um Tricky com senso de humor otimista e você estará próximo.
O método de trabalho de Wolfgang é instintivo: “Começo com uma história e depois moldo as melodias e os sons para que se adaptem a essa história.” O techno exuberante de Mosquito é um exemplo perfeito. “A inspiração para essa faixa veio de uma viagem que fiz à Bélgica”, revela Wolfgang. “Tenho fobia de mosquitos e, certa noite, estava deitado, exausto, quando comecei a ouvir aquele zumbido típico. Não conseguia ficar ali parado, tive que levantar e tentar capturá-lo. Obviamente, não consegui encontrá-lo, e o zumbido estava me deixando louco. Só queria dormir um pouco, mas, como você pode ouvir na música, algo mais aconteceu.”
No estúdio, o processo de gravação de Mosquito começou quando Wolfgang, que tem um talento natural para contar histórias, explicou a Andy e Jan o que havia acontecido e como queria recriar isso. “É muito divertido trabalhar com o Wolfgang porque ele está sempre contando histórias”, explica Andy. “Mesmo que o trabalho para criar sons seja intenso, é sempre um desafio novo quando alguém quer que você crie o som de um mosquito — ou de um spray de insetos!” E foi exatamente isso que aconteceu. “Era uma forma de trabalhar completamente diferente”, admite Andy. “Wolfgang conta uma história e todos nos mobilizamos para transformá-la em som. Nunca tinha trabalhado assim antes. Foi intenso, mas também muito divertido e interessante.”
A namorada de Jan, Rosa Barba, colocou a voz em Fra Testa e Mano, uma das faixas importantes do álbum. “No início eu mesmo faria os vocais”, explica Wolfgang, “mas queria que soasse algo erótico, então perguntei se ela queria fazer no meu lugar. A performance foi fantástica, mas quando fomos mixar, senti que faltava algo. Decidi que precisava de um som espiritual, como contas de um rosário ou algo assim.
Quando era pequeno e ia à igreja, via as senhoras mais velhas sussurrando e mexendo nas contas. Não conseguíamos encontrar nada que soasse assim, e então algo estranho aconteceu. Estávamos quase rezando por inspiração, quando decidi ir ao banheiro. Não conseguia achar o interruptor da luz, então peguei a primeira coisa que encontrei — era uma cortina de contas. Incrível! Gravamos o som da cortina abrindo e fechando num DAT da Sony e o sampleamos no Akai. Este é um exemplo de como trabalhamos. Podemos usar qualquer som.”
Muitas das faixas de Time Pie refletem as simples, embora comoventes, melodias das canções tradicionais do Reno, do mesmo modo que o Kraftwerk fazia nos LPs clássicos em que Flür participou. Mas Guiding Ray, a música que escreveu com Paul Wilkinson, conecta-se com uma dimensão diferente de seu passado. O otimismo da música simboliza muito do que Wolfgang sente sobre o Yamo, mas a combinação de sua bateria rock’n’roll, melodias de três notas e uma linha de baixo de oito notas remete ao som de outro grande grupo de Düsseldorf: Neu!, no qual tocava Michael Rother, ex-guitarrista dos Spirits of Sound.
“No Kraftwerk nos preocupávamos muito em conectar o passado (que para nós eram as canções tradicionais do nosso país) com o futuro”, explica Wolfgang. “Esse era o significado do nosso conceito de Electronische Volksmusik (música popular eletrônica). É um sentimento de nostalgia pelo passado e de emoção quanto ao futuro. O conceito de Time Pie (Pastel do Tempo) é parecido: se você corta o bolo, pode encontrar camadas que se relacionam com os diferentes períodos da minha vida. É um bolo que esteve assando com todas as minhas experiências ao longo dos anos!”
Embora Wolfgang esteja agora envolvido na mudança do Yamo para outra gravadora, os preparativos para o novo álbum já estão em andamento. Com o título Serenity Supreme, o disco contará com Barbara Uhling-Stollwerck (que cantou em Mosquito e Dr. Ug.ly.) como coautora. “Para mim, o inglês é a língua do pop”, explica Wolfgang. “Barbara é meio inglesa e pode me ajudar a me expressar, pois entende melhor as sutilezas da língua. Além disso, sou apaixonado pela voz dela, então ela é uma ótima parceira para mim.” Paul Wilkinson, coautor de Guiding Ray, também participará.
Após mais de três décadas na música, parece que a carreira de Wolfgang Flür vai entrar em uma nova fase. Como sempre, com os olhos voltados para o futuro. E pelo menos por agora, seu futuro é Yamo.
Entrevista enviada por Rene Marcelo Figueroa — Argentina.
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