Uncut: Muitos motivos foram sugeridos para sua mudança para Berlim: a cena local de arte e música, escapar da supercelebridade, uma desintoxicação espiritual e física — além da estimulação criativa de estar numa cidade dividida, isolada e tensa. Essas teorias são precisas? Você se lembra por que a cidade te atraiu?
David Bowie: A vida em Los Angeles havia me deixado com um senso esmagador de pressentimento. Eu cheguei à beira de um colapso induzido por drogas muitas vezes, e era essencial tomar algum tipo de atitude positiva. Durante muitos anos, Berlim me atraiu como uma espécie de santuário. Era uma das poucas cidades onde eu podia circular praticamente anônimo. Eu estava ficando falido, era barato viver lá. Por algum motivo, os berlinenses simplesmente não ligavam. Bom, pelo menos não para um cantor de rock inglês. Desde a adolescência, eu era obcecado com o trabalho carregado de “angst” dos expressionistas, tanto artistas quanto cineastas, e Berlim era o lar espiritual deles. Era o núcleo do movimento Die Brücke, de Max Reinhardt, Brecht, e onde Metrópolis e O Gabinete do Dr. Caligari haviam nascido. Era uma forma de arte que refletia a vida não por eventos, mas por estado de espírito. E era isso que eu sentia que meu trabalho estava se tornando.
Minha atenção voltou-se novamente para a Europa com o lançamento de Autobahn, do Kraftwerk, em 1974. A predominância de instrumentos eletrônicos me convenceu de que esse era um campo que eu precisava explorar um pouco mais. Muito se falou sobre a influência do Kraftwerk em nossos álbuns de Berlim. Na maioria das vezes, acho que são análises preguiçosas. A abordagem musical do Kraftwerk, em si, pouco tinha a ver com o que eu fazia. A deles era uma série controlada, robótica e extremamente medida de composições — quase uma paródia do minimalismo. Tinha-se a sensação de que Florian e Ralf estavam totalmente no controle de seu ambiente, e que suas composições eram bem preparadas e refinadas antes de entrar no estúdio.
Meu trabalho tendia a ser peças de humor expressionista, com o protagonista (eu mesmo) se entregando ao zeitgeist, com pouco ou nenhum controle sobre sua vida. A música era, na maior parte, espontânea e criada no estúdio. Em substância também, éramos polos opostos. A percussão do Kraftwerk era produzida eletronicamente, rígida no tempo, imutável. A nossa era o tratamento distorcido de um baterista extremamente emotivo, Dennis Davis. O tempo não apenas "mudava", mas era expressado de maneira mais que “humana”. O Kraftwerk sustentava aquele ritmo inflexível com fontes de som totalmente sintéticas. Nós usávamos uma banda de rhythm’n’blues. Desde Station to Station, a hibridização de rhythm’n’blues com eletrônica era um objetivo meu. Aliás, segundo uma entrevista dos anos 70 com Brian Eno, foi isso que o atraiu a trabalhar comigo.
Outra observação preguiçosa que gostaria de destacar é a suposição de que Station to Station era uma homenagem a Trans-Europe Express, do Kraftwerk. Na verdade, Station to Station precedeu Trans-Europe Express em um bom tempo — 76 e 77, respectivamente. A propósito, o título vem das Estações da Cruz e não do sistema ferroviário. O que me fascinava no Kraftwerk era a determinação singular deles em se afastar das sequências de acordes americanas estereotipadas e sua entrega completa a uma sensibilidade europeia expressa através da música. Essa foi a grande influência deles em mim.
Um detalhe interessante: meu primeiro nome na lista de desejos para guitarrista em Low era Michael Rother, do Neu!. O Neu!, por sinal, era apaixonado, até diametralmente oposto ao Kraftwerk. Liguei para o Rother da França nos primeiros dias de gravação, mas de forma muito educada e diplomática, ele disse “não”.
Uncut: Alguns biógrafos especulam que a era de Berlim foi uma reação instintiva ao espírito do punk rock da metade dos anos 70 — visual despojado, direto, sério, carregado de pessimismo, emocionalmente cru. Uma teoria plausível?
David Bowie: Seja por causa do meu cérebro confuso ou da pouca repercussão do punk inglês nos EUA, o movimento praticamente já tinha acabado quando entrou no meu radar. Passou completamente por mim. As poucas bandas punk que vi em Berlim me pareciam uma espécie de pós-1969 Iggy, e parecia que ele já tinha feito tudo aquilo. Embora eu me arrependa de não ter estado presente em todo o circo dos Pistols, porque esse tipo de entretenimento teria feito mais pela minha disposição depressiva do que quase qualquer outra coisa que consigo imaginar. Claro, conheci eles bem cedo quando estava em turnê com o Iggy — pelo menos o Johnny e o Sid. John obviamente estava bastante impressionado com o Jim [Iggy], mas quando encontrei Sid, ele estava quase catatônico, e me senti muito mal por ele. Era tão jovem e precisava muito de ajuda.
Quanto à música, Low e seus irmãos são uma continuação direta da faixa-título de Station to Station. Sempre me pareceu que há uma faixa em qualquer álbum meu que já indica o rumo do álbum seguinte.
Uncut: Existiu algum plano sério de gravar com o Kraftwerk, como alguns biógrafos afirmam?
David Bowie: Não, em nenhum momento. Nós nos encontramos socialmente algumas vezes, mas foi só isso.
Uncut: Você realmente percorria as autobahns ouvindo Autobahn sem parar, como Ralf Hütter certa vez insistiu?
David Bowie: Certamente pelas ruas de Los Angeles em 1975, sim. Mas na autobahn de Berlim, Autobahn já era notícia velha. Então, resumindo, não…
Uncut: Houve encontros ou planos de colaboração com outras bandas do Krautrock, como Cluster, Neu! ou Tangerine Dream?
David Bowie: Nada disso. Conhecia Edgar Froese e sua esposa socialmente, mas nunca conheci os outros, pois não tinha real interesse em ir para Düsseldorf — eu estava muito focado no que precisava fazer no estúdio em Berlim. Tomei para mim a tarefa de apresentar o som de Düsseldorf ao Eno, com o qual ele ficou muito impressionado — Conny Plank e companhia (e também ao Devo, aliás, que por sua vez foi apresentado a mim pelo Iggy). E o Brian acabou indo para lá gravar com alguns deles.
Uncut: “V-2 Schneider” (do álbum "Heroes") é uma homenagem ao Florian?
David Bowie: Claro.
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