sábado, 16 de agosto de 2025

Kraftwerk — Ao vivo em Bruxelas — 14 de Agosto de 2025

 



A eletrônica atemporal do Kraftwerk toma conta de Bruxelas

 

Na noite de ontem, nosso apresentador Dominique Ragheb esteve presente na “Place des Palais” , em Bruxelas, para assistir ao concerto especial do Kraftwerk. Entre homenagem ao passado e mergulho no futuro, o grupo alemão ofereceu um espetáculo multimídia fora do comum.

A “Bélgica sempre foi um território acolhedor para a música eletrônica”, como mostram seus festivais de renome mundial e pioneiros do gênero como o Telex, cuja obra é reconhecida muito além de nossas fronteiras. O país soube reconhecer e celebrar, por décadas, os sons vindos das máquinas. No dia 14 de agosto de 2025, o coração de Bruxelas voltou a vibrar, apenas um mês após o concerto espetacular de Jean-Michel Jarre, agora ao som eletrônico gerado por outra lenda: o Kraftwerk.

Cinquenta anos após sua criação, o grupo de Düsseldorf, cuja influência na história da música é colossal, não apenas sobre o Techno ou o Ambient, mas também sobre o Rock de David Bowie, Joy Division, Depeche Mode*, e até sobre os efeitos de guitarra do U2 em Achtung Baby ,  esteve ali para uma exploração ampliada de seu repertório.

 Um show "Multimídia" além do tempo

 Batizado de “Multimedia Tour”, o show apresentou o quarteto como de costume: parados atrás de seus púlpitos, como silhuetas imóveis vestindo trajes com design ao estilo “Tron”, com linhas iluminadas. A formação alemã tocou como se estivesse encaixada em uma tela gigante, sobre a qual foram projetadas imagens retrofuturistas por quase duas horas.

O concerto começou com um turbilhão de números em estilo data vintage verde, à la Matrix, com a faixa “Numbers”, mergulhando o público de imediato nas atmosferas de “Computer World”.

História de amor entre um homem e seu computador, esse álbum conceitual de 1981 foi, ironicamente, o que mais recebeu tratamento analógico ao longo da carreira do grupo e foi o mais explorado no show. Um dos pontos altos foi a execução de “Computer Love”, com luzes rosa ácidas, lembrando ao público mais jovem (pois várias gerações estavam presentes na Place des Palais) que a música “Talk”da banda Coldplay é um empréstimo direto dessa joia do Kraftwerk.

Um tributo visual e sonoro à Bélgica

 Outro álbum bastante tocado foi “The Man-Machine”, com faixas como “Spacelab”, “Neon Lights” (acompanhada de projeções coloridas em estilo Dan Flavin, com tubos fluorescentes), e “The Model”, que mesmo com um pequeno problema técnico de sincronização, foi acompanhada por imagens de desfiles de moda em preto e branco dos anos 1950.

Como presente extra para a noite, o Kraftwerk preparou um espetáculo multimídia adaptado ao público belga, com a versão remixada e dançante de “Tour de France”, acompanhada de projeções do ídolo nacional Eddy Merckx e de criações visuais inspiradas em Bruxelas.

Quanto ao setlist, foi especialmente rico, incluindo faixas lendárias não tocadas nas apresentações anteriores. Foi o caso da leitura apocalíptica e em modo techno de “Radioactivity”, com a voz metálica de Ralf Hütter (quase 79 anos!) recitando nomes de desastres nucleares como Chernobyl e Fukushima, um momento que reforça o posicionamento ativista contra certas políticas nucleares do último membro fundador ativo do Kraftwerk.

Um mergulho multidimensional no tempo

Durante esse show multimídia e multidimensional, outros clássicos também foram tocados. Algumas faixas receberam tratamentos contemporâneos, com tempos mais rápidos e adição de frequências graves, levando as novas gerações a dançar. Outras mantiveram a sonoridade das produções Kling Klang do século passado.

Quando “The Robots” soou no bis, a dimensão funky apareceu em “Trans-Europe Express”, e os graves de “Autobahn” invadiram a Place des Palais. Ficou claro que “não se tratava apenas de um concerto”, mas de um verdadeiro capítulo da história da música, onde cada nota lançava o público rumo ao futuro… brincando com o passado.

Fonte : RTBF

 

 

 


terça-feira, 15 de julho de 2025

Ralf Hütter — Entrevista — Rolling Stone —15 de julho — 2025



Ralf Hütter: "Kraftwerk é uma inteligência artística, não artificial" 
 Rolling Stone Itália  
15 de julho de 2025  

Encontrei em Roma um dos 100 artistas mais importantes do século XX, Ralf Hütter. Poderia dizer até 50, ou mesmo 30. Sem os Kraftwerk, que Hütter e Florian Schneider — músicos de formação eclética, de boa família — fundaram em Düsseldorf, a história da música pop não seria a mesma: Bowie, Sakamoto e o electropop inglês, o hip hop nova-iorquino, a techno de Detroit, ou seja, a origem de boa parte do que ouvimos e amamos até hoje devem algo a eles. Claro, eles também deviam algo a Stockhausen e Pierre Schaeffer, a Schubert, Brian Wilson, à Bauhaus e aos fantasmas da Alemanha pós-nazista. Permanece inatingível o sublime romantismo retrô que percorre seu repertório, o otimismo futurista que beira o sarcasmo e o humor negro, desde a viagem de *Autobahn* (1974) — 23 minutos no carro com o som da buzina e o ronco do motor, o rádio sintonizado em uma espécie de surf pós-atômico: "Wir fahr’n / fahr’n / fahr’n / auf der autobahn".  

Durante todo o verão, nas salas do espaço Indipendenza — um grande e fascinante apartamento vazio do início do século XX, perto da estação Termini —, são projetadas em paredes inteiras meia dúzia de imagens do arquivo dos Kraftwerk: cenários de shows e fotos de cena. *Kraftwerk – The Man Machine*, a exposição assinada pelo próprio Hütter, é essencial e minimalista, como tudo que o cerca. "Éramos a primeira geração pós-guerra, ao redor não havia mais nada, e quando percebemos isso foi um choque. Depois, começamos a ver aquele vazio como um espaço para criar algo", ele me dirá em uma breve conversa.  

Encontro-o em uma das salas da galeria, vazias, como disse. Hütter tem 78 anos, mas aparenta 20 a menos. Calças, sapatos, camiseta preta, um suéter Fred Perry preto, uma invejável resistência ao calor romano. Ele é o único remanescente da formação clássica a levar adiante a máquina dos Kraftwerk, a última grande variação sobre as lendas românticas (e yiddish) em torno dos autômatos. Schneider morreu há cinco anos; Karl Bartos e Wolfgang Flur saíram nos anos 1980.  

Lê-se muito sobre sua discrição, suas raras entrevistas, respostas lacônicas. Sua infinita gentileza. Sua paixão por bicicletas. Ele está em ótima forma. Na semana que vem, tocará em Amsterdã, diz ele, e partirá um dia antes para ir de bicicleta com os outros membros dos Kraftwerk — 140 km (a banda se apresentará em Lajatico, Pisa, no dia 18, e em Taormina no dia 25). Esta entrevista será interrompida porque na TV está passando a cronometrada do Tour de France, e Hütter quer ao menos ver como termina. Como dizia a música: "Furo no pavê / a bicicleta consertada às pressas / o pelotão recomposto / companheiros e amigos" (Tour de France, 1983).  

O que é esta exposição?  

São gráficos e imagens criados por mim e por meu amigo Florian Schneider. Imagens que tornam a música visível, porque sempre trabalhamos de forma multimídia desde que começamos, no final dos anos 1960.  

Você já disse que tocavam em galerias de arte porque se sentiam mais livres lá.

Não éramos conhecidos o suficiente para tocar no circuito do rock. Na verdade, participamos de alguns festivais de rock logo no início, mas naquela época a cena artística era mentalmente mais aberta, é a verdade.  

Nos shows e nas capas dos discos, usavam imagens encontradas, da gráfica industrial, da Bauhaus. Fizeram tudo sozinhos ou alguém os ajudou?

Muitos nos ajudaram: fotógrafos, animadores, diretores, pintores, todos amigos nossos. Mas a ideia de usar aqueles gráficos era nossa, nossos eram os projetos e os roteiros. O que tentávamos fazer era tornar a música mais intensa e, sobretudo, visível.  

Além do piano, você estudou arquitetura.

A verdade é que fiquei um tempo na universidade só para ocupar lugar. Só pensava em música, e os Kraftwerk vêm principalmente da música. No final dos anos 1960, começaram a ser usadas projeções e luzes estroboscópicas nos shows. Não tínhamos muito dinheiro, então usávamos fotos e imagens muito simples também do ponto de vista da produção. Depois, conseguimos desenvolver essas ideias. Nos anos 1970, fizemos um pequeno filme em preto e branco para *Trans Europa Express*. Hoje, usamos quase exclusivamente CGA. Foi um desenvolvimento contínuo.  

Vocês se "exibiram" no MoMA, na Bienal de Veneza. Hoje, diria que os Kraftwerk são mais uma obra de arte do que uma banda de rock?

Não, para mim não há diferença. Sou a mesma pessoa que viu Muddy Waters tocar em 1963. Nunca gostei de exercícios de piano, do virtuosismo da execução. Sempre me interessou compor, juntar ideias de todas as linguagens, do design à fotografia. Como disse antes, o mundo da arte sempre foi mais aberto a nós. Hoje, somos representados por Monika Sprüth, uma grande agente internacional de Berlim, que nos colocou em contato com instituições como o MoMA, onde tocamos todo nosso catálogo em 3D.  

Trabalharam muito com a imagem do robô. O que acha do debate atual sobre inteligência artificial?

Os Kraftwerk são uma inteligência artística, não artificial. Ao usar a imagem dos robôs, sempre destacamos nosso lado artístico: ser criativos, atentos ao meio ambiente, abertos a tudo.  

Você já disse que robôs ajudam os artistas a ter uma vida. No YouTube, ainda circula um vídeo de uma apresentação de vocês no programa *Domenica in*, no final dos anos 1970. Quatro manequins dos Kraftwerk estão na plateia, vocês fazem playback no palco. Depois de um tempo, não se sabe mais quem é robô.

Sim, lembro. Motorizamos os manequins para que fizessem movimentos simples e participassem de sessões de fotos no nosso lugar. Naquela vez, a gravadora insistiu para que nossos manequins ficassem na primeira fila. Havia um pouco de humor, acho que o público entendeu bem.  

O apresentador era Corrado, que entrou na brincadeira. Aquela versão de *The Robots* é incrível e perturbadora. No fundo, eles ficarão lá para sempre tocando, os humanos não.

O robô é um sonho antigo, vem da Idade Média. Não devemos ter medo. Sempre pensei que, enquanto os robôs faziam o trabalho promocional, eu teria mais tempo para me dedicar à música. Robôs pertencem ao mundo da automação, podem tocar como sequenciadores, sintetizadores, hoje como computadores. Podem nos ajudar a executar músicas humanamente impossíveis, ao contrário de um piano normal, e isso abre novas soluções criativas e artísticas.  

Nunca perdeu o otimismo em relação à tecnologia?

Na verdade, quando começamos, não era um período tão otimista, havia muitas tensões sociais. Pensávamos no que poderíamos fazer para contribuir, ser positivos. Antes de *Autobahn*, toquei por sete anos com Florian. Os computadores chegaram muito tarde, na época só alguns compositores podiam usá-los; em comparação, éramos músicos de rua. *Autobahn* ainda é música de rua, de certa forma. Hoje, você pode se comunicar sem viajar, enquanto antes era preciso ir fisicamente. Como Kraftwerk, nosso trabalho nas antigas faixas é feito à distância. Ainda gosto muito de tocar ao vivo, tocar *com* a música, encontrar novas soluções todos os dias. O mundo, por outro lado, ainda está cheio de problemas e tensões.  

Muitos músicos devem algo aos Kraftwerk, de Bowie aos inventores da techno. Você já teve contato com algum deles?

Derrick May e Juan Atkins sempre foram muito gentis comigo. Fui muito amigo de Ryūichi Sakamoto, que escreveu a letra em japonês de *Radioactivity*; eu adorava tocar algumas de suas melodias maravilhosas. Infelizmente, ele também nos deixou.

Link original Rolling Stone 

domingo, 13 de julho de 2025

Ralf Hütter — Entrevista — Corrie Della Sera — 2025

 


Kraftwerk: a arte conseguirá sobreviver até mesmo à Inteligência Artificial

por Sandra Cesarale

Ralf Hütter, fundador da inovadora banda alemã: acreditamos na multimídia da música

Sou o operador do mini computador”: Ralf Hütter, cofundador junto com Florian Schneider dos Kraftwerk, recita com naturalidade em italiano um verso de “Pocket Calculator”, tal como foi cantado em 1981 na televisão durante o programa Discoring. Ele sorri e esclarece: “Mas eu não falo a sua língua. No entanto, estudei latim e sei francês”.

Ele acaba de chegar a Roma vindo de Stuttgart, onde os Kraftwerk fizeram um concerto para sete mil pessoas. O visionário grupo alemão, inovador da música eletrônica, também estará na Itália para dois shows em julho: dia 18 no Teatro del Silenzio, em Lajatico (“Espero tocar lá há dois anos”) e dia 25 no Teatro Antico de Taormina. Ralf, que completará 79 anos em agosto, está sentado em um dos cômodos do decadente e fascinante apartamento em estilo art nouveau, transformado na galeria de arte Indipendenza, que hospeda a exposição “Kraftwerk – The Man Machine”, organizada pelo londrino Michael Bracewell.

“A obra dos Kraftwerk sempre foi uma arte multimídia. Unimos filmes, animação, gráficos e álbuns. É como um poderoso show que torna a música visível. Criamos imagens que estimulam os sons. Nunca contratamos um artista famoso, tudo é feito em casa, por nós”.

Vocês começaram no final dos anos 60.

“Somos de Düsseldorf, no início nos apresentávamos apenas em galerias de arte, museus e pequenos clubes”.

Por quê?

“No mundo todo o rock’n’roll de sucesso nas paradas dominava. E nós éramos jovens experimentadores”.

Frustrante?

“Não, era exatamente o que queríamos ser e tocar”.

Os Kraftwerk, com robôs, naves espaciais e computadores, previram um mundo dominado pela tecnologia.

“Um pouco me assusta ter antecipado o futuro, a realidade, os acidentes. Nossa música poderia ser definida como um documentário de fantasia”.

David Bowie era um admirador de vocês, mas nunca colaboraram. Por quê?

“No final dos anos 70, nosso estúdio Kling Klang não estava equipado para gravações profissionais, tínhamos apenas os instrumentos para fazer nossa música. Por isso encaminhei David e Iggy Pop para Berlim”.

Uma oportunidade perdida?

“Não, porque justamente em Düsseldorf nasceu nossa amizade e as letras do álbum Trans-Europe Express também falam sobre nossa relação. A primeira vez que tocamos essa música ao vivo com os Kraftwerk, no Paradiso de Amsterdã, foi uma emoção inesquecível: tínhamos criado música a partir da vida”.

Sente falta de artistas como Bowie?

“Sim, obviamente. Mas precisamos continuar ouvindo e nos abrindo ao mundo”.

Agora é a Inteligência Artificial que cria músicos.

“Prefiro falar de Inteligência Artística, a criatividade expressa pelo indivíduo”.

A IA não é perigosa?

“Não, porque a arte e os artistas sempre sobreviverão”.

O último álbum, Tour de France, é de 2003. Quando virá um novo trabalho?

“Me perguntam isso com frequência: quando estiver pronto”.

Sem piadas?

“Agora estamos concentrados nos shows ao vivo. Nos novos concertos reunimos todo o nosso repertório. Nos últimos 50, 60 anos escrevi com meu parceiro letras e músicas que ainda hoje podemos levar ao palco”.

Seu parceiro, Florian Schneider, faleceu há cinco anos.

“Ele quis me ver antes de morrer. Sua perda me marcou profundamente. Começamos juntos em 1968. Não éramos uma banda, mas um instrumento. Florian deixou os Kraftwerk em 2008, muito estresse, ou talvez já sentisse que a doença havia começado a atacá-lo”.

O senhor olha para trás às vezes?

“Não, sigo sempre em frente”.

11 de julho de 2025

Link Original : Corrie Della Sera













sábado, 12 de julho de 2025

Ralf Hütter — Entrevista — The Daily Telegraph – Janeiro — 2003

 




The Daily Telegraph – Ralf Hütter – Janeiro de 2003

(Entrevista por Patrick Hamilton)

Eles estavam ocupados com uma temporada de apresentações próprias na Cité de la Musique, o museu e centro cultural da música em Paris. Substituindo-os no festival Big Day Out, para a incredulidade dos fãs locais de longa data, estavam os notoriamente reclusos membros humanos do Kraftwerk: os fundadores Ralf Hütter e Florian Schneider, junto aos colaboradores veteranos Fritz Hilpert e Henning Schmitz. Sentado na penumbra da van de turnê do Kraftwerk, do lado de fora do Big Day Out em Auckland, o verdadeiro Ralf Hütter movimenta os braços lentamente para demonstrar o gesto do seu clone robótico, lá em Paris.

— "Eles fazem uma dança lenta de motorista, que algumas pessoas chamam de Tai Chi", diz ele. "Eles têm nossos rostos."

Aos 54 anos, Hütter — com seu inglês calmo e quase perfeito — lida educadamente com a ideia de que seus robôs o tornaram, junto aos outros Kraftwerkers, imortais e sem idade.

— "De certo modo, sim", responde. "Também há um ditado alemão: ‘Ewig währt am längsten’ — o eterno dura mais. Isso tem a ver com automação. E também, enquanto eu estou dando uma entrevista, os robôs podem fazer uma sessão de fotos, filmagens, então é um processo de arte industrial. É daí que eles [os robôs] vêm."

Uma entrevista com Hütter — um evento raro — soa e parece como uma cena longa de um filme de Stanley Kubrick. Ele é tanto um cientista da computação quanto um músico inovador, um oráculo do techno e inventor prático. Os temas são constantes, todos alinhados com o manifesto do Kraftwerk, que essencialmente permaneceu inalterado ao longo dos 33 anos do grupo. Veja esse revelador trecho:

— Vocês estão gravando novo material?
— "Sim. O tempo todo."
— Então, quando poderemos ouvir...?
— "Bem, está planejado para este ano."
— Um álbum?
(Nenhuma resposta)
— Pode dar uma ideia de como está soando?
— "Estamos trabalhando nisso."
— Algo?
— "Muito avançado."

Hütter diz que talvez até trabalhem nesse álbum em breve, enquanto estiverem na Austrália. Atualmente, a amada tecnologia do Kraftwerk avançou tanto que eles conseguem levar seus célebres estúdios Kling Klang em laptops. O grupo sempre afirmou que esse era o destino da música. Claro, os fãs já ouviram esse papo sobre um novo álbum antes — inclusive, um disco sem título chegou a ser incluído na lista de lançamentos da EMI em 2000. Nada aconteceu, embora o mundo tenha recebido uma nova música na época, Expo 2000, que veio com remixes de protegidos do Kraftwerk, como o Orbital e o Underground Resistance de Detroit.

Embora eles não lancem um álbum de material inédito desde Electric Café em 1986, Hütter diz que ele e a comunidade Kraftwerk têm trabalhado constantemente:

— "Nos chamamos de trabalhadores musicais — musik arbeiter", diz. "É o que fazemos. Sempre temos pessoas trabalhando de perto conosco em vários projetos — artistas, cinegrafistas, programadores, pessoas de imagem, e nossos amigos [como o artista Emil Schult] — há muito, muito tempo, pintando, pintando para a capa do Autobahn [de 1974] (e também Computerworld, de 1981). E letras."

Desde os tempos em que precisavam construir seus próprios protótipos de instrumentos eletrônicos, Hütter diz que o Kraftwerk manteve uma relação próxima com os engenheiros de música eletrônica que continuaram esse trabalho, atuando como "pilotos de teste" de novos programas musicais. A tecnologia, segundo ele, tem sido generosa com o Kraftwerk:

— "Estamos felizes — anos atrás tínhamos que carregar toneladas de equipamentos analógicos e agora é tudo digital, em disquetes, discos rígidos e todos os tipos de armazenamento", diz. "Para nós é perfeito. É, digamos, portátil. Pocket Calculator, uma música que compusemos há mais de 20 anos, hoje é uma realidade para nós. Assim, podemos viajar mais. Tudo está funcionando a nosso favor, o que é ótimo."

Hütter diz que suas adoradas máquinas raramente falharam ao longo dos anos. Ele atribui isso ao respeito que lhes dedicam:

— "Tivemos sorte...", diz... "Tratamos nossa tecnologia com muito cuidado e amor, e ela nos retribuiu. Fomos bem tratados pela tecnologia. Como dizemos, às vezes tocamos as máquinas, e às vezes as máquinas nos tocam. Então funciona muito bem, é simbiose."

Já faz 21 anos desde que o Kraftwerk se apresentou na Austrália. Mas isso não significa muita coisa — após a turnê mundial no fim de 1981, o grupo só voltou aos palcos em 1990. Tirando uma turnê europeia em 1991, as aparições foram esporádicas. Tocar em uma festa dançante de um dia inteiro, como a do Boiler Room, não é uma experiência única para o Kraftwerk, embora eles estejam mais acostumados a um público mais refinado — ou ao menos menos suado.

— "Tocamos em todos os lugares", diz Hütter. "Centros de arte. Na maioria das vezes fazemos shows nossos. [Para] pessoas do cinema, teatro, visuais, arte performática, música, dança, disco."

Apesar das ausências, o status do Kraftwerk na cultura popular não se alterou. Afinal, como todos sabem, esses senhores virtualmente inventaram — ou ao menos organizaram os blocos fundamentais — da música como conhecemos hoje. E forneceram alguns dos mantras musicais mais tocantes e minimalistas ao longo do caminho: Autobahn, Computer Love, Pocket Calculator, Tour de France. Hütter diz que seu Kraftwerk biônico sempre buscou agradar "tudo" o que é humano:

— "Os pés, o coração, o intelecto, o corpo."

— "Acho que isso também facilita o entendimento em diferentes aspectos culturais. Então tocamos aqui, tocamos ali, tocamos. Todos os dias. Musik arbeiter."

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Ralf HUtter — Entrevista — Sound Check Magazine – Setembro de 1991

 


Sound Check Magazine – Ralf Hütter – Setembro de 1991:


Sound Check: Com Fritz Hilpert e o português Fernando Fromm-Abrantes, dois novos integrantes da Kraftwerk substituem Wolfgang Flür e Karl Bartos. Há poucos dias até circularam rumores de dissolução...
Ralf Hütter: Ah, que nada, isso é tudo bobagem! É besteira. Não, eram apenas alguns ex-colaboradores nossos. Florian Schneider e eu trabalhamos juntos há 23 anos, sempre com diferentes colaboradores e músicos — nem sei quantos. Agora são um engenheiro de computação e outro músico, e talvez, no futuro, tenhamos ainda mais músicos.

Sound Check: O que vocês usam no palco da Kraftwerk?
Ralf Hütter: Temos a tecnologia mais recente de estúdio, ou seja, um estúdio sem fitas — nada mais de fitas. Tudo é controlado por computador, drive de disco óptico, Synclavier e vários racks com equipamentos de processamento de som...

Sound Check: Por exemplo?
Ralf Hütter: Eu não sou o engenheiro — esse é o engenheiro musical — mas são efeitos sonoros, modulações, ecos, espaços, reverberações, sequenciadores.

Sound Check: Mas ainda há possibilidade de interferir ao vivo?
Ralf Hütter: Sim, sim. Só está tocando um arranjo que podemos chamar e podemos acrescentar ou diminuir elementos. Acho que isso fica claro: de repente, interferimos e surgem novos eventos. Ou, como em “Taschenrechner” (“Calculadora”), usamos uma mini eletrônica, mini-teclados, com os quais controlamos todos os sons, e meus colegas também têm outras mini unidades de controle para disparar ou não os sons. Isso permite um certo grau de espontaneidade.

Sound Check: Qual é o papel do público nisso?
Ralf Hütter: (reflete um longo tempo) Alguém disse que apresentamos nossa música como cinema tridimensional, ou seja, cinema mais atores na frente da tela. Então tudo acontece de forma bastante completa — é uma presença só. A vibração do público, por exemplo em Londres, a empolgação, isso realmente chega até nós.

Sound Check: Vocês não sentem vontade de entrar na dança, acompanhar o ritmo no palco? Afinal, quase não há movimento no palco...
Ralf Hütter: Não dá, porque aí perderíamos o controle fino dos nossos botões. Você poderia apertar a tecla errada, e algumas são muito pequenas. É como na aviação: num jumbo-jet controlado por computador você provavelmente não pode puxar o manche tão bruscamente quanto num pequeno avião esportivo.

Sound Check: O que motivou vocês a fazer algo de novo? O último álbum saiu em 1986, a última turnê real foi em 1981. Agora há The Mix, uma espécie de releitura do próprio passado com meios atuais — isso teve algum gatilho concreto?
Ralf Hütter: Não, estamos sempre trabalhando no estúdio Kling Klang, sempre nesse conceito Kraftwerk. Agora transferimos todo o nosso programa musical para a plataforma digital. Não usamos mais fitas. Isso tomou muito tempo, e programamos os computadores pensando nessa performance, nesses shows. Durante esse trabalho, reprogramamos as músicas e as fizemos em nova versão. The Mix é praticamente um álbum ao vivo, porque é exatamente o que fazemos ao vivo: mixar e moldar os sons, distribuir os elementos. Esse conceito de “mix” é praticamente um disco ao vivo, como fazemos no show, embora já tenha mudado um pouco. Dá para perceber a mudança.

Sound Check: Você não gosta de chamar os trabalhos da Kraftwerk de “canções”, não é?
Ralf Hütter: Não, para mim “canção” lembra aqueles menestréis medievais. É mais composição, juntar sons.

Sound Check: Ou seja, composição sonora, como você prefere chamar?
Ralf Hütter: Sim, juntar sons, isso define bem. Aí aparecem várias vozes, vozes de computador, máquina de escrever cantando, vozes fonéticas, vozes artificiais, completamente sintéticas de personagens inexistentes, e eu uso minha voz para fazer a voz humana, um tipo de canto falado.

Sound Check: Depois de terminar The Mix, você fez mais mixagens em Nova York e Londres. Isso é uma ambição cosmopolita da banda?
Ralf Hütter: Sim!

Sound Check: Um requisito que a banda coloca para si mesma?
Ralf Hütter: Não, isso já existe. E hoje, com transferência de dados e modem — você pode se conectar e enviar os sons diretamente, enviar anotações por fax, tocar o telefone, até fazer uma espécie de mixagem à distância, ouvir junto, um meio de comunicação. Isso é fantástico, poder fazer assim hoje. Não é preciso carregar tanta coisa.

Sound Check: A Kraftwerk sempre fez música futurista...
Ralf Hütter: O presente do futuro!

Sound Check: Como é o presente do futuro nos anos 90? Onde você vê o futuro que a Kraftwerk provavelmente vai antecipar? Já tem alguma ideia na cabeça?
Ralf Hütter: No momento ainda está meio embrionário, eu ainda não entendi bem — mas já sinto que algo está chegando. É, com certeza, muito excitante fazer música hoje, com todos esses acessos disponíveis para quem trabalha com isso. Há 100 anos, por exemplo, era preciso ter orquestras grandes e príncipes para bancar — não gostaria de estar na pele de um criativo daquela época. Hoje, com aparelhos compactos e novos dispositivos pequenos, que também são relativamente baratos, você tem fácil acesso, pode começar e sair fazendo, e isso muita gente faz, música caseira. Você só tem que estar aberto às ideias — o mundo das ideias!

Sound Check: Muita coisa mudou tecnicamente nos últimos dez anos desde a última turnê da Kraftwerk. O que isso trouxe para a banda? Como você avalia essa evolução?
Ralf Hütter: Basicamente, foi a transição do meio analógico para o digital.

Sound Check: Mas vocês ainda usam sons analógicos?
Ralf Hütter: Claro. Temos todos os sintetizadores Kraftwerk de cada fase. Então, temos uma coleção de sintetizadores Kraftwerk de todas as fases, e hoje alguns deles voltaram a ser muito valiosos.


Entrevista com Philipp Roser

terça-feira, 8 de julho de 2025

Ralf Hütter — Ciao Magazine — Setembro — 1991


 Entrevista com Ralf Hütter publicada na revista Ciao Magazine em setembro de 1991 (versão italiana):


Ciao Magazine – Quando nos encontramos na Itália, vocês manifestaram a intenção de lançar um álbum ao vivo. Depois saiu a coletânea. E agora?

Ralf Hütter – A verdade é que as faixas de The Mix foram pensadas e remixadas para se tornarem um álbum ao vivo. No sentido de que também foram retrabalhadas digitalmente e tratadas com amostragens criadas a partir das antigas gravações dessas mesmas músicas. Começamos por Autobahn, eliminando o material dos três primeiros discos porque há anos não tocamos mais essas músicas ao vivo. Obviamente, faixas como The Model foram sacrificadas, pois não era possível incluir toda a nossa produção mais relevante — mas isso pode significar que em breve uma segunda coletânea poderá ser lançada. Os shows na Itália e na Alemanha serviram como primeiro banco de ensaio para experimentar e aprimorar nosso som. Para isso, levamos sempre conosco os equipamentos dos estúdios Kling Klang, que reduzimos e transformamos em um estúdio compacto e transportável. Após terminarmos a mini-turnê na Itália, voltamos para a Alemanha para fazer mais algumas datas e, em Düsseldorf, finalizamos as gravações do nosso ao vivo. O disco reunirá todas as nossas músicas mais famosas, de Tour de France a Radioactivity.

Ciao – Então, apesar de tudo, vai sair um álbum ao vivo...

Ralf Hütter – Acho que sim. Será um mix do que vocês ouviram nos concertos italianos.

Ciao – Falando do início de vocês, sei que vêm de formação musical clássica. O que você lembra das aulas no Conservatório de Düsseldorf?

Ralf Hütter – Eram normais, voltadas para pessoas da alta burguesia.

Ciao – Naquela época vocês já tocavam instrumentos eletrônicos?

Ralf Hütter – Não, tocávamos instrumentos acústicos. Só mais tarde abandonamos esse tipo de música e nos dedicamos à eletrônica contemporânea. Vivendo na Alemanha, na região do Ruhr, caracterizada pelas numerosas indústrias metalúrgicas, nossa música representa a trilha sonora do cotidiano. Nossas composições, no entanto, não são desprovidas de um pano de fundo cultural que parte da música clássica alemã, especialmente Beethoven. Por outro lado, há também referência à música eletrônica de Stockhausen, embora nunca tenhamos tido contato pessoal com ele. Esses foram os pontos de partida para desenvolvermos os ritmos industriais. Nossa música é mais normal e dinâmica em comparação à dos Tangerine Dream, que é contemplativa e meditativa.

Ciao – Antes você definiu sua música como “trilha sonora do cotidiano... para desenvolver os ritmos industriais”; essas ideias já haviam sido expostas pelo futurismo. O que vocês herdaram daquele movimento?

Ralf Hütter – Nos interessavam a velocidade, o movimento e a teoria de A arte dos ruídos, de Luigi Russolo, que deu início à pesquisa musical de vanguarda. É aí que podemos situar o começo da música dos ruídos, e é a essa família espiritual que nos sentimos idealmente ligados.

Ciao – Do que vocês mais foram influenciados no começo da carreira?

Ralf Hütter – Da vida cotidiana.

Ciao – Como se conecta o seu primeiro lançamento discográfico como Organisation com o nascimento do Kraftwerk?

Ralf Hütter – Foi um período em que o grupo mudava sempre. Uma vez fazíamos uma coisa, outra vez outra. Tanto eu quanto Florian tocávamos com muitos músicos. Em 1970, construímos os estúdios Kling Klang, e foi daí que nasceu o Kraftwerk.

Ciao – Que resultados vocês alcançaram usando os equipamentos dos estúdios Kling Klang?

Ralf Hütter – É tudo digital, analógico-digital e computadorizado. Isso nos permite reproduzir qualquer tipo de som e compor o que chamamos de música contemporânea.

Ciao – Qual é a relação entre a música e as imagens computadorizadas que aparecem nos seus vídeos?

Ralf Hütter – Não gostamos de nos limitar apenas à música: somos multimídia. Há uma conexão estreita entre música e imagem. Através das experiências que tivemos trabalhando com profissionais do New York Institute of Technology, conseguimos criar um diálogo entre elas. Criamos vídeos baseados justamente nessa relação.

Ciao – Os shows que vocês apresentaram na Alemanha são semelhantes aos que fizeram na Itália?

Ralf Hütter – Sim, mas atualizados conforme nossas necessidades atuais, porque estamos sempre trabalhando e tudo é constantemente renovado.

Ciao – No início, a crítica musical colocou vocês entre os artistas da cosmic music...

Ralf Hütter – Já mencionei isso antes, ao falar do Tangerine Dream e da nossa diferença. Na época, os críticos não tinham entendido que o Kraftwerk não fazia música cósmica, mas música terrestre. É verdade que a Terra faz parte do cosmo, mas fazemos música ligada à urbanização. A geografia musical alemã é muito variada: cada centro como Munique, Frankfurt, Colônia, Düsseldorf, Berlim, criou sua própria música. Nós, por exemplo, pertencemos a Düsseldorf e ao mundo industrial dessa cidade.

Ciao – Seguindo seu raciocínio, qual foi a influência de Munique na produção de Giorgio Moroder, que inclusive assimilou muitas das suas experimentações?

Ralf Hütter – Munique está mais voltada à música disco e é mais próxima da música de lazer de Los Angeles.

Ciao – Até que ponto a tecnologia é importante para a sua vida musical?

Ralf Hütter – Os sons sintetizados, computadorizados e a telemática são a nossa vida: queremos fazer um tipo de música que fale por si só, que seja transparente e una arte e tecnologia, como já acontecia nos anos 1920, na época da Bauhaus de Weimar. Desde então, o progresso tecnológico avançou muito rapidamente e hoje podemos nos considerar pessoas afortunadas, pois conseguimos até nos deslocar junto com nosso estúdio de gravação. Nosso pequeno mundo de computadores nos permite compor e gravar ao mesmo tempo em qualquer lugar onde estejamos.

Ciao – Muitos artistas, entre eles David Bowie, John Foxx e Gary Numan, afirmaram ter sido influenciados por vocês. O que pensam deles?

Ralf Hütter – Esses artistas desenvolveram sua própria versão da eletrônica contemporânea. Hoje, o efeito de feedback eletrônico faz com que muitos grupos se aproximem desse modo de fazer música, especialmente a black music com o som techno de Detroit.

Ciao – Em 1977 o punk renegou todos os outros tipos de música, inclusive a de vocês. Qual foi sua avaliação daquele fenômeno?

Ralf Hütter – O punk foi mais um movimento, nunca foi interessante para nós, porque não se podem criar sons novos com instrumentos antiquados. Mesmo naquele período, seguimos sempre nosso próprio caminho.

Ciao – Qual será o futuro da sua música e da música alemã?

Ralf Hütter – O futuro começa hoje. Existem muitos grupos jovens crescendo, inclusive alguns jovens negros amadores. Essas bandas são muito afortunadas, enquanto nós precisávamos de uma formação muito variada e extensa. Eles só precisam aprender a usar o computador e os pequenos teclados eletrônicos. Acho isso muito positivo.

Ciao – As críticas mais frequentes contra vocês dizem que sua música é fria e sem sentimento...

Ralf Hütter – Essas acusações foram feitas, ou ainda são feitas, por pessoas que não se conhecem. São baseadas em falsidades iniciais e não as consideramos aceitáveis. Além disso, se escutássemos tudo o que dizem nossos inimigos, entraríamos em paranoia. Só depois de agir e mudar as situações é que se pode parar para escutar. Nós fizemos a música verdadeira — assim como existe o cinéma vérité, fazemos a musique verité, porque todos somos robôs. Em nossos shows, apresentamos situações reais em forma de pequenas sinfonias, como Autobahn ou Trans Europe Express.

Entrevista por Giuseppe Cavazzoni

domingo, 6 de julho de 2025

Ralf Hütter — Entrevista — Hot Press Magazine — Agosto — 2005

 


Ralf Hütter publicada na Hot Press Magazine, em agosto de 2005, realizada por Stuart Clark:


Na véspera da apresentação principal do Kraftwerk no festival Electric Picnic, o líder Ralf Hütter fala com uma franqueza rara sobre David Bowie, U2, hip-hop, ciclismo e por que, às vezes, até homens-máquina precisam sorrir.

Fale sobre uma criança em uma loja de doces: depois de 30 anos de fanatismo, estou finalmente ao telefone com o Kraftwerk — um grupo tão recluso que só recentemente começou a se comunicar com o mundo exterior por meios que não fossem fax. Diante disso, seria de se esperar que o líder Ralf Hütter fosse um entrevistado relutante, mas, não — a única hora em que o senhor de 59 anos parece preferir estar refazendo a fiação de uma placa de circuito é quando pergunto se ele aprova o termo “Krautrock”.

“Isso só existe na cabeça de jornalistas estúpidos”, diz ele, colocando firme e diretamente a mim — e à minha profissão — em seu devido lugar. “Qualquer pessoa que entenda de música sabe que Kraftwerk não é o mesmo que Can ou Tangerine Dream. Eles tentam criar uma ‘cena’ que, na verdade, não existe.”

Esqueça a Alemanha — não havia ninguém no mundo que soasse como o Kraftwerk quando eles surgiram no cenário internacional em 1974, graças a “Autobahn”. Uma epifania musical para todos, de Bowie a Bambaataa, seus ecos ainda são sentidos hoje. Qual foi o primeiro disco que causou impacto em Hütter?

Tutti Frutti, do Little Richard”, diz ele, soando como um garoto de 12 anos de novo. “A rádio estatal alemã não tocava rock’n’roll, então a gente sintonizava as transmissões da American Forces Network de Stuttgart. Lembro de ficar muito empolgado quando os Beatles apareceram — e irritado com meus pais por não me deixarem ir a um show deles. Depois disso, viajávamos por toda a Alemanha para ver bandas. Como não tínhamos dinheiro para hotel, dormíamos no carro.”

Hütter talvez tivesse seguido uma trajetória mais ortodoxa no rock se não fossem suas experiências de fim dos anos 60 com Pink Floyd e LSD. Com horizontes ampliados, o Kraftwerk montou sua lendária base Kling Klang em Düsseldorf, com equipamentos que eram de ponta na época, mas que hoje pareceriam peças de museu.

“Todos nos conhecemos em cursos de improvisação realizados na universidade aqui”, ele continua. “Naquela época, nosso equipamento era ao mesmo tempo muito simples e muito caro — o primeiro Mini-Moog que comprei custava o mesmo que meu Volkswagen! Trabalhamos muito com câmaras de eco e vários tipos de gravadores de fita.”

Com o analógico como norma da indústria (e não como fetiche retrô), o Kraftwerk era forçado a usar técnicas de edição bastante primitivas.

“Para colar uma parte de uma música na outra, tínhamos que cortar a fita com uma lâmina e depois colar os pedaços. Você perdia quatro ou cinco segundos e só os encontrava depois grudados no seu cotovelo. Era tudo muito minimalista.”

Minimalista ou não, essas sessões iniciais de estúdio renderam fãs ilustres como Brian Eno e David Bowie, que por alguns anos quase virou um tributo ambulante ao Kraftwerk.

“Encontramos David Bowie depois de um show dele em Düsseldorf, e ele nos disse que tinha dirigido por aí em seu Mercedes ouvindo Autobahn sem parar”, lembra Hütter com carinho. “Ter uma figura tão respeitada no rock dizendo ‘vocês têm que ouvir esse grupo’ fez com que, de repente, tivéssemos um público mainstream. Por causa disso, conseguimos fazer turnês no exterior e comprar novos equipamentos.”

O status iconoclasta do Kraftwerk fez com que eles fossem uma das poucas bandas que não foram descartadas com a onda punk.

“Talvez tenhamos um pouco dessa atitude punk”, reflete Ralf. “Fazer as coisas do nosso jeito e usar o ambiente ao nosso redor como inspiração para a música. Os Ramones fizeram isso em relação a Nova York, assim como o MC5 e os Stooges foram profundamente ligados a Detroit.”

O número de bandas punk e pós-punk influenciadas pelo Kraftwerk é impressionante — Siouxsie & The Banshees, Adam & The Ants, PIL, Boomtown Rats, Joy Division, Cabaret Voltaire, Human League, Simple Minds, Depeche Mode, Tubeway Army, OMD e Ultravox, todos pegaram carona no catálogo do grupo. Mais surpreendente ainda é o papel que o Kraftwerk teve — sem querer — no nascimento do hip-hop em Nova York, em 1981.

“Nosso assessor nos levou a um clube em Nova York onde o DJ estava tocando Trans Europe Express”, diz ele com orgulho paternal. “Ao invés de terminar, a música continuava, e continuava, por uns 15 minutos. Fui até a cabine e lá estava o Afrika Bambaataa nos toca-discos. Foi uma grande surpresa — mas muito agradável.”

Dois anos depois, o Kraftwerk estava fazendo sua própria versão de beatboxing humano.

“Em Tour De France, usamos o som da minha respiração e do meu coração retirado de um eletrocardiograma. Essa música tem, no sentido mais literal, uma qualidade humana.”

Quando Hütter disse recentemente que “Ciclismo é o homem-máquina. Trata-se de dinâmica, de continuar sempre em frente, sem parar”, parecia quase como se ele estivesse delineando o manifesto do Kraftwerk.

“O ciclismo tem muitos paralelos com certos aspectos da música, sim”, ele concorda. “Em 2003 fomos convidados a ser convidados nos helicópteros da Tour de France, o que nos colocou bem dentro da corrida e da sua organização. Nós mesmos pedalamos e já percorremos todos os passes nos Alpes e Pirineus.”

Seria uma falha grave no meu dever jornalístico não perguntar a Ralf sobre a versão de Neon Lights que o U2 colocou no lado B do single Vertigo.

“O Bono nos enviou a gravação que eles fizeram, e eu acho que ficou muito boa”, entusiasma-se. “Ela transmite o mesmo sentimento de perambular pela cidade à noite que a original. Ele já disse que o Kraftwerk é uma das grandes bandas ‘soul’ — e o U2 também tem essa qualidade. Eles fazem coisas grandiosas parecerem íntimas, e se conectam com as pessoas de forma muito pessoal. E mais: para uma banda do tamanho deles, eles correm muitos riscos — tanto musical quanto politicamente.”

Não quero esfregar sal na ferida de quem não conseguiu ingressos, mas a visita do Kraftwerk ao Olympia de Dublin em março de 2004 foi um sonho elétrico realizado. Junto com seu arsenal de clássicos, tivemos o prazer de ver a pouco robótica cena de Ralf tentando manter a seriedade enquanto Fritz Hilpert sofria um ataque de risos.

“Às vezes, as coisas fazem você sorrir”, conclui Hütter. “É só a concentração — porque ficamos girando botões, ajustando faders, tudo isso. Você está operando máquinas de alta tecnologia e pequenos movimentos podem criar grandes efeitos.”

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Ralf Hütter — Entrevista — Keyboard Magazine — Outubro — 1991

 


Entrevista com Ralf Hütter publicada na Keyboard Magazine em outubro de 1991:


Keyboard – Essa é sua primeira turnê em quase uma década. Por que agora?

Ralf Hütter – Bem, estivemos trabalhando no nosso estúdio Kling Klang, e agora está tudo digitalizado e nossos computadores estão funcionando. Levou um bom tempo para conseguirmos montar essa música. Pela primeira vez, agora conseguimos apresentá-la ao vivo da maneira como a ouvimos.

Keyboard – As músicas de The Mix não são remixes, estritamente falando. O press release da Elektra as chama de “reinvenções”.

Ralf Hütter – Não usamos mais fitas, tudo está armazenado digitalmente e controlado por computador. Usamos todo o nosso catálogo dos últimos 20 anos, sampleando os sons analógicos originais das fitas master de 16 canais. Escolhemos os sons que achamos únicos, ou insubstituíveis, ou talvez apenas em boa forma (risos), e outros nós mudamos ou alteramos. Estávamos interessados em usar sons originais antigos, de nossas velhas máquinas analógicas caseiras, adaptando tudo tecnicamente para os anos 90. É apenas uma mistura de sons sampleados dos masters antigos, além de novos sons eletrônicos completamente sintéticos. Tudo é remontado. Para nós, mixar é a forma de arte de fazer música hoje.

Keyboard – Vocês tiveram grande influência na música de dança americana, particularmente no techno de Detroit.

Ralf Hütter – Tocamos em Detroit em 1981, acho, e ficamos surpresos com a recepção calorosa do público das pistas de dança. Lembro que as pessoas ficaram surpresas por termos tantos fãs negros e latinos. Infelizmente, a turnê foi marcada muito espontaneamente, porque ninguém achava que haveria interesse, então tudo o que conseguimos fazer na época foi adicionar mais alguns shows e voar pelos EUA. Como viajávamos tão rápido, nunca conseguimos consolidar esse público negro ou latino. Simplesmente aconteceu. Ficamos muito surpresos na época. Antes, éramos vistos como uma banda muito europeia. Mas sempre houve um movimento disco forte na Europa, e sempre fomos fanáticos por dança, com nossas pequenas danças robóticas. Foi muito encorajador receber uma reação tão forte na América. Antes disso, o circuito do rock’n’roll sempre teve certa resistência à eletrônica. Estavam presos à fórmula da guitarra, enquanto o público das pistas era muito mais aberto aos sons modernos. Aí, em 1982, Afrika Bambaataa fez a versão dele de “Trans Europe Express”, que foi ótima — uma combinação muito boa do nosso tipo de música eletro com rap. É uma mistura de culturas diferentes, e sempre gostamos disso.

Keyboard – Foi por isso que decidiram refazer suas músicas antigas em estilo house em The Mix?

Ralf Hütter – Isso foi apenas um desenvolvimento natural da nossa música. Sempre tivemos essas bases de bateria eletrônica, mesmo antes da Roland TR-808 ganhar destaque, usando pequenas caixas de ritmo e gatilhos de bateria eletrônicos caseiros nos anos 70, quando trabalhávamos com um engenheiro que desenvolveu esses pads para que pudéssemos ser uma banda sem baterista. É só uma questão de tudo ter se unido.

Keyboard – Vocês falam com frequência sobre o interesse em ritmos — especificamente, ritmos de dança — mas seus ritmos não são exatamente o que a maioria chamaria de “funkados”. Como vocês conciliam essa fascinação por padrões staccato rígidos com o desejo declarado de criar grooves dançantes e funky?

Ralf Hütter – Para nós, máquinas são funky. Algumas geram loops rítmicos por acidente, outras são programadas para tocar uma batida. Nossa música é eletrônica, mas gostamos de pensar nela como música étnica da área industrial alemã — música folclórica industrial. Para nós, tem a ver com a fascinação por tudo ao nosso redor, tentando incorporar o ambiente industrial à nossa música. Vindo de uma formação clássica, ficamos bastante entediados com o passado e começamos a ouvir o presente. As máquinas, essas ferramentas para fazer música estavam ali, e pensamos: por que não usá-las? Nossa tradição aqui havia sido quebrada, bombardeada. De um lado havia a tradição antiga — música clássica, toda aquela música de marcha para a geração anterior. E do outro, as coisas modernas construídas depois da guerra.

Keyboard – Vocês tomaram algumas decisões interessantes em The Mix, uma das quais foi mudar “Autobahn” de um ritmo staccato reto para um groove em tercinas. O que motivou isso?

Ralf Hütter – Algumas dessas músicas estão conosco há muito tempo, e é assim que as temos tocado ao vivo. Mudamos as coisas de cidade para cidade, de país para país. Com “Autobahn”, às vezes dirigimos um pouco mais rápido, às vezes mais devagar, dependendo do limite de velocidade.

Keyboard – As buzinas de carro na seção do meio de “Autobahn” são sons sampleados ou aproximações analógicas?

Ralf Hütter – Em The Mix, elas foram sampleadas das fitas master originais de “Autobahn”. Não conseguimos recriá-las, pois tinham uma afinação especial, são acordes com trítonos, para soarem como buzinas de carro. Nunca conseguimos recapturar aquele som analógico — acho que foi feito num Moog ou num ARP — então apenas sampleamos os ruídos originais e usamos para criar algo chamado “hupenkonzert”. É uma expressão comum alemã que significa “concerto de buzinas” — em outras palavras, um engarrafamento, onde todos estão com raiva e buzinando. Então toquei um pequeno “hupenkonzert” ali. Usamos ruído branco para criar o som dos carros passando. Num trecho em que a letra diz, em alemão, “a estrada é uma fita cinza, com listras brancas e bordas verdes”, queríamos evocar a imagem do pneu cruzando essas listras brancas, então usamos uma explosão reversa de ruído branco.

Keyboard – Como foram criados os vocais distorcidos e subaquáticos dessa seção?

Ralf Hütter – Usamos um instrumento programável por computador que Florian construiu, chamado Robovox. Ele permite montar qualquer palavra a partir de fonemas pré-programados. É um coro mecânico, totalmente sintético. Queremos libertar a tecnologia para que ela fale por si só, e quando usamos o Robovox nessa música, é como se os carros estivessem falando com suas buzinas afinadas.

Keyboard – Você gostaria mesmo de viver num mundo em que todas as máquinas da sua vida, de eletrodomésticos a automóveis, falassem com você?

Ralf Hütter – Bem, elas já falam! Quando você abre os ouvidos, pode ouvir a música escondida no ambiente. É muito melhor do que ouvir só música, que é apenas ruído afinado, afinal. A paisagem industrial é fascinante. Mesmo as máquinas estão falando.

Keyboard – Quando você e Florian estudavam na Universidade de Düsseldorf, chegaram a ter contato com peças clássicas do século XX inspiradas na estética das máquinas, como a “Sinfonia das Máquinas” de Mossolov ou o “Ballet Mécanique” de Antheil?

Ralf Hütter – Claro, mas mais importante ainda, estávamos na região de Düsseldorf, que fica perto de Colônia, onde ficava o estúdio eletrônico usado por Stockhausen, e não tão longe dos estúdios franceses onde Pierre Boulez trabalhava. Era comum, desde bem jovens, ir ouvir Stockhausen. A cena artística e musical, especialmente a eletrônica, era bem acessível, havia vários programas de rádio com música eletrônica estranha. Então tínhamos acesso a tudo isso, fez parte da nossa formação, da nossa educação. Sempre nos consideramos a segunda geração de exploradores eletrônicos, depois de Stockhausen.

Keyboard – Por sua vez, vocês influenciaram fortemente o que se poderia chamar de terceira geração de artistas eletrônicos — como as bandas Visage, Depeche Mode, e também David Bowie em sua fase berlinense.

Ralf Hütter – Acho que influenciamos Bowie, pelo menos foi o que ele nos disse. Ele contou que, quando chegou à Alemanha, ouvia “Autobahn” o tempo todo no rádio do carro. Nos encontramos na Alemanha, quando ele procurava um lugar para trabalhar, e sugerimos que tentasse Berlim. Então fornecemos uma inspiração de certo tipo — uma espiritualidade eletrônica! Quanto aos artistas britânicos que você mencionou, fizemos várias turnês longas na Inglaterra, onde conhecemos alguns desses músicos em clubes. Para nós, foi maravilhoso ver esse tipo de interesse. Antes, sempre fomos considerados outsiders, e de repente estávamos por dentro.

Keyboard – Sua declaração na edição de março de 1982 da Keyboard, de que vocês fazem “música para alto-falantes”, é inquietantemente parecida com a observação de Joseph Goebbels de que os nazistas não teriam chegado ao poder sem o alto-falante. Existe um perigo inerente nesse seu fetichismo tecnológico?

Ralf Hütter – Bem, isso sempre existiu, desde a invenção da faca, que pode ser usada para fatiar pão ou matar seu vizinho. Não vejo a tecnologia moderna como algo tão diferente. Para nós, qualquer perigo tem mais a ver com a situação psicológica entre homem e máquina. Tentamos trabalhar do nosso lado, desenvolvendo uma atitude mais amigável com as máquinas, e, como resultado, elas sempre foram muito amigáveis conosco. Pelo menos nunca tomamos choque ou sofremos acidentes.

Keyboard – Vocês trarão dois novos membros para a turnê americana de setembro.

Ralf Hütter – Na verdade, já conhecemos eles — Fritz Hilpert e Fernando Abrantes — como engenheiros eletrônicos há alguns anos. Eles vão fazer percussão e controlar os equipamentos, e Florian e eu vamos programar nossos robôs e fazer a mixagem. Usaremos projeções de vídeo em uma grande tela, com imagens geradas por computador que correspondem às músicas, junto com filmagens de “Autobahn”, do “Trans Europe Express” e trechos de nossos vídeos.

Keyboard – Como funcionam os robôs no palco?

Ralf Hütter – Eles são controlados por teclado. Um engenheiro alemão, conhecido do Florian, os programou. Normalmente ele trabalha com computadores de escritório e coisas assim, mas o convencemos a usar suas habilidades numa outra área. Os robôs são programados, mas podemos reprogramá-los. Veremos o quão confiáveis são e até onde conseguimos que improvisem.

Keyboard – Por que decidiram construir esses robôs em primeiro lugar?

Ralf Hütter – Temos essa composição, “The Robots”, do álbum The Man-Machine: “Somos programados apenas para fazer / Qualquer coisa que você quiser”. Antigamente, usávamos manequins de vitrine, mas eles não se moviam, então o próximo passo lógico foi ter robôs. Eles são feitos de plástico, com braços de metal e nossos rostos remodelados. São idênticos, embora talvez desenvolvam um pouco mais de individualidade ao longo da turnê.

Keyboard – De Hardware a Robocop e O Exterminador do Futuro, a cultura pop parece obcecada por robôs. Por quê?

Ralf Hütter – Porque são máquinas muito próximas do ser humano, tanto na aparência quanto no comportamento. Todo o nosso trabalho trata dessa relação próxima entre homem e máquina. Por isso escrevemos a música “The Robots”. Não nos sentimos alienados, porque passamos muitos anos tentando estabelecer uma relação mais próxima com as máquinas, uma abordagem mais holística do que apenas vê-las como coisas externas, como armas de agressão ou algo assim — mas sim como extensões de nós mesmos. E, em troca, recebemos muito retorno delas, e isso nos fascina.

Keyboard – Vocês se interessam por realidade virtual e outros desenvolvimentos cibernéticos recentes?

Ralf Hütter – Sim, de certa forma. Seria maravilhoso incorporar realidade virtual às nossas apresentações. Quando formos à América, gostaríamos de conhecer algumas das pessoas da Califórnia que estão desenvolvendo essa tecnologia. Sabe, quando ouvi o termo “realidade virtual” pela primeira vez, pensei que, para mim, a música sempre foi como uma realidade virtual. Com algo como “Autobahn”, você pode realmente ver a paisagem enquanto ouve, porque nossa música tem uma qualidade muito visual. Então, quando li sobre realidade virtual e sobre pessoas entrando em mundos gerados por computador, pensei: “Fazemos isso com música há anos”.

Entrevista a Mark Dery

terça-feira, 1 de julho de 2025

Wolfgang Flür — Entrevista — DockRock Magazine 10/09/1999

 


DockRock
– O que te motivou, 10 anos após o fim da colaboração com Ralf e Florian, a escrever um livro sobre o Kraftwerk?

Wolfgang Flür – Com certeza, dois fatores foram decisivos para este livro. A ideia veio de dois fãs do Kraftwerk que conheci no ano passado, e deles também veio o conceito e o design do livro. Confiei a eles o manuscrito e material fotográfico antigo, e eles criaram a versão final. Eles têm, sem dúvida, uma grande participação na obra e acho que fizeram um trabalho excelente. O segundo motivo para lançar este livro foi colocar um ponto final definitivo nessa época. O livro é, portanto, em certa medida, também a minha despedida do Kraftwerk, mesmo que muitos ainda me associem à banda no futuro.

DockRock – Atualmente circulam boatos de que o livro pode vir a ser retirado do mercado.

Wolfgang Flür – Bom, isso eu não posso confirmar. Até onde sei, não houve nenhuma tentativa de nenhuma parte para tirar o livro do mercado. O único problema no momento é que, depois que a primeira edição esgotou em poucos dias, a gráfica está com dificuldades para acompanhar a demanda com uma nova tiragem.

DockRock – Por que houve a separação após o Electric Café?

Wolfgang Flür – O Kraftwerk sempre foi uma banda voltada para dentro. No início dos anos 80, quase ninguém mais conseguia adentrar esse universo. A palavra de ordem era: ficar parado. Isso fez com que os estímulos e inspirações diminuíssem. Karl Bartos (que também saiu do Kraftwerk) e eu gostaríamos de ter tido uma participação maior na criação do novo material. Teria sido bom também trazer músicos de fora para dar um novo fôlego ao grupo. Se você se isola demais, eventualmente as ideias acabam. Uma troca seria necessária. Além disso, o ciclismo era, naquela época, mais importante para Ralf e Florian do que a música.

DockRock – No livro, você descreve o clima frio que reinava naquela época dentro do Kraftwerk. Até que ponto os caminhos pessoais diferentes dos membros contribuíram para a separação?

Wolfgang Flür – Com Computerwelt, atingimos o nosso auge. A turnê mundial que se seguiu, com todos os seus desgastes, colocou o grupo à prova. Chegamos aos nossos limites. Com a saída de Emil Schult, que desempenhava o papel de uma espécie de “pai da banda” (acompanhava o Kraftwerk em todas as turnês desde 1975), perdemos uma figura de ligação importante. Naturalmente também mudamos pessoalmente, e penso que a minha mudança foi a mais perceptível, sem querer transformar isso em uma competição. Me refiro mais ao aspecto humano. Após sair do grupo, experimentei várias coisas, me envolvi com design de móveis, viajei bastante, mas no fim percebi que a música continua sendo o centro da minha vida. Foi aí que comecei a trabalhar no Yamo.

DockRock – Seu primeiro disco solo (Yamo – Time Pie), que contou com a participação de integrantes do Mouse on Mars, foi lançado quase sem visibilidade. Quais foram os motivos disso?

Wolfgang Flür – Meu disco acabou se tornando rapidamente uma questão política. Minha gravadora na época (EMI Electrola) praticamente boicotou o Time Pie. Por isso, o novo Yamo, no qual estou trabalhando agora, será lançado por outra gravadora.

DockRock – Já existe uma data de lançamento? E o que os ouvintes podem esperar?

Wolfgang Flür – Ainda não há uma data exata. Não me coloco sob pressão, deixo as coisas se desenvolverem da maneira que for melhor para o Yamo. Provavelmente haverá um primeiro single no inverno e o álbum completo na primavera. Depois de deixar o Kraftwerk, percebi que minhas ideias pessoais sobre o som da música eletrônica caminham numa direção muito mais calorosa. Yamo faz música eletrônica, mas com uma abordagem completamente diferente daquela da minha antiga banda. Estou trabalhando atualmente com uma jovem cantora que vai interpretar algumas faixas, e outros músicos também estarão envolvidos. Eu me vejo como uma espécie de contador de histórias moderno. Um crítico descreveu o Yamo como poetry pop. Eu gostei dessa definição.

DockRock – Especialmente a música eletrônica se desenvolveu em diversas direções nos últimos anos, e surgiram bandas e projetos que trouxeram novos aspectos ao gênero. Artistas mais recentes influenciam o seu trabalho?

Wolfgang Flür – Não. Para alcançar um som original e pessoal, eu tento me isolar um pouco nesse sentido.

DockRock – Qual é a sua relação com a internet? Haverá uma versão do Yamo online?

Wolfgang Flür – Eu não tenho conexão nem interesse nisso no momento. A situação legal em relação a downloads e MP3s também não está esclarecida. Mas quem se interessa pelo Yamo pode entrar em contato conosco através do site de Martin Hausen e Markus Schmitz (www.commmuni-care.de). Tentaremos responder a todos. Mas sinto falta, nessa história toda, do contato humano direto ou da criação de um valor real. Um objeto físico, que você pode guardar na estante e pegar de vez em quando para se envolver com ele, não pode ser substituído por uma simples transmissão de dados. Vejo aí o perigo de as pessoas não precisarem mais sair de casa, não irem mais à caça. Para mim, falta a experiência sensorial.

DockRock – Mas a experiência sensorial nas megastores de música também é bem limitada.

Wolfgang Flür – Isso é verdade. Mas para mim, o objeto físico ainda tem um valor do qual não quero abrir mão.

DockRock – No seu livro, você se mostra bastante insatisfeito com a versão cover de Das Modell lançada pelo Rammstein.

Wolfgang Flür – Sim, considero essa versão realmente malfeita.

DockRock – Richard, do Rammstein, que esteve aqui há algumas semanas, disse que o Kraftwerk é uma das poucas bandas em que todos do grupo concordam como referência, especialmente em termos de imagem e encenação visual da música.

Wolfgang Flür – Minha crítica foi direcionada apenas à versão de Das Modell, não ao Rammstein como um todo, mesmo que, pessoalmente, o que eles fazem não me atraia. Mas acho a ideia e o conceito bastante coerentes. Tudo isso me parece vir de uma tradição de engolidores de espadas medievais e artistas de feira. O Rammstein trouxe isso para os dias de hoje. Eles são um espetáculo, sem dúvida. Certamente se encaixam bem no espírito da época. Hoje em dia, algo novo precisa ser muito impactante para se destacar em meio ao excesso de estímulos.

DockRock – Muito obrigado pela entrevista.