Entrevista com Ralf Hütter, para o jornal português Público no ano de 2004, quando o grupo se apresentou pela primeira vez em terras Lusitanas.
2 de Abril de 2004
Para os do rock, os Rolling
Stones é que são. Para os da pop, ninguém bate os Beatles. Para as gerações eletrônicas, o mito fundador dá pelo nome de Kraftwerk. Mas não apenas. Bono,
dos U2, diz que "tiveram influência decisiva sobre ele". David Bowie
refere que "são únicos". Karl Hyde, dos Underworld, recorda-se de ter
pensado, quando os ouviu pela primeira vez, "que não existia nada assim no
planeta onde vivia". Os artistas plásticos Gilbert & George são fãs.
Em Outubro do ano passado
regressaram com o álbum "Tour de France Soundtracks" - o seu primeiro
registro de originais em mais de uma década -, mas no primeiro espetáculo em
Portugal vão apresentar também os temas mais emblemáticos. Ao longo dos anos, mudaram diversas vezes de
formação - o produtor português Fernando Abrantes integrou a formação em 1991
-, mas Florian Schneider e Ralf Hütter têm-se mantido à frente do projeto. Este
último, o líder e porta-voz, raramente dá entrevistas e quando o faz revela o
menos possível, como o PÚBLICO confirmou. Afinal, o mito tem que persistir.
PÚBLICO - Num dos
poucos espetáculos que deram nos últimos anos, em 1998, no Festival Sónar de
Barcelona, utilizavam projeções vídeo, animações infográficas e robôs que se
diluíam por entre os músicos. O que mudou desde então?
RALF HÜTTER - Em 2004, temos os
Kraftwerk em versão computador-portátil. Todo o nosso material analógico foi
reconvertido para o formato digital e essa é a grande diferença. Até há pouco
tempo era-nos praticamente impossível transportar todo o nosso material dos
estúdios Kling Klang. Era difícil viajar com tecnologia tão pesada. Hoje, com
os portáteis e com a cultura digital, é mais fácil realizar uma digressão
mundial como aquela que estamos a fazer.
P.- Nos espetáculos
desta digressão têm tocado os temas mais conhecidos. É isso que irá suceder em
Portugal?
R.- Será uma mistura desses temas
com as novidades de "Tour de France Soundtracks". Será uma atmosfera
muito audiovisual, com as projeções sincronizadas com a música. Estivemos na
Escandinávia recentemente e foi maravilhoso! As pessoas entendem a música eletrônica, mas foi óptimo quebrar um pouco mais o gelo... [risos]. Já
passámos pelo Japão, regressámos à Europa e segue-se Portugal. Na era digital,
podemos viajar e tudo funciona na perfeição.
P.- Mudaram para o digital, mas o imaginário do último álbum,
"Tour de France Soundtracks", mantém-se. Mais do que um grupo, são um
conceito de imagem-som perfeitamente definido, o que também cria resistências
por quem espera que mudem.
R.- O conceito Kraftwerk, tal como foi definido por mim e
por Florian [Schneider] nos anos 70, não sofreu grandes alterações. É essa a
nossa identidade e não a queremos perder, mas isso não quer dizer que não
estamos atentos ao que se passa à nossa volta e que não tentamos
transformar-nos à nossa maneira. A nossa música electrónica tem vindo,
gradualmente, a mudar. Está mais energética e "Tour de France
Soundtracks" reflete isso.
P.- Ao longo dos anos, sofreram alterações na formação, mas você e
Florian Schneider mantiveram-se na liderança desde 1968. Qual o segredo da
longevidade dessa relação?
R.- Já lá vão 40 anos. Somos como Kling e Klang... [risos].
É um casamento eletrônico perfeito.
P.- No último álbum regressaram ao conceito do ciclismo. Não é
propriamente a primeira imagem que nos ocorre quando imaginamos o futuro. De
onde vem esse fascínio?
R.- Adoro andar de bicicleta. As
bicicletas representam energia, progresso sustentado e atento aos valores
humanos, andar para a frente, o entendimento perfeito entre homem e máquina.
Não podemos fazer marcha atrás com bicicletas. Com a música acontece o mesmo -
o que interessa é andar para a frente, estar atento ao tempo e espaço, manter o
balanço certo e encontrar o nosso ritmo. O ano passado, quando estávamos a
terminar o álbum, tivemos um convite do diretor da Volta à França para seguir
algumas etapas de helicóptero e no carro oficial. Foi magnífico e permitiu-nos
desenvolver as últimas ideias com total confiança no conceito que estávamos a
desenvolver. Quando o "Tour" terminou em Paris, tínhamos o disco
pronto.
P.- Fala em ritmo e energia, mas nos espetáculos são conhecidos pelas
expressões impassíveis e pelos movimentos reduzidos ao essencial. É apenas a
música que tem que ser dinâmica?
R. - Ah! Mas nós somos
superativos, emocionalmente e fisicamente. Estamos completamente despertos, mas
a manipulação dos computadores e dos teclados é muito sensível e não nos deixa
espaço para grandes movimentações. Temos que estar concentrados para não
cometer erros.
P.- São um dos grupos
mais influentes da música popular e um dos mais citados pelas novas gerações.
Como é que lidam com frases como os "Beatles eletrônicos"?
R.- É uma energia muito positiva
que nos é transmitida por pessoas mais novas. É bom chegar aos 50 anos e, onde
quer que vamos, seja a Jamaica ou o Japão, sermos bem recebidos, o que prova
que a música electrónica, apesar das diferentes linguagens, ultrapassa
eventuais diferenças culturais. É uma forma de comunicação que se impôs, o que,
para nós, é um enorme cumprimento. Quando começámos, no final dos anos 60,
estávamos confinados às galerias de arte ou às universidades e é gratificante
vermos como as coisas mudaram desde então.
P.- O ano passado entrevistámos Fernando Abrantes, que integrou os
Kraftwerk em 1991. Dizia-nos ele que, depois dos concertos, era comum
deslocarem-se a clubes de música de dança para tomarem contato com o que se
andava a ouvir. Continuam a fazê-lo?
R.- Sim, depois dos espetáculos,
normalmente existe sempre alguém que nos convida para ir a clubes de música. É ótimo para praticarmos um pouco da nossa dança robótica e para ouvirmos o que
se anda a fazer. Esperamos que em Portugal alguém nos convide. Recordo-me bem
do Fernando [Abrantes], fez uma digressão conosco, é um excelente músico, e é
muito amigo de um dos nossos engenheiros eletrônicos, Fritz Hilpert.
P.- Diz-se que esta será a última oportunidade para ver os Kraftwerk ao
vivo, mas também existe quem diga que irá ser lançado um álbum ao vivo depois
do final da digressão. Corresponde à verdade ou vão estar mais dez anos
parados?
R.- O álbum ao vivo é uma
possibilidade e vamos, sem dúvida, editar mais discos. Em Junho, depois da última
data da digressão, em Moscou, vamos parar e decidir o que vamos fazer, mas
estivemos tanto tempo sem lançar nenhum disco, devido ao trabalho de
masterização e catalogação do material antigo, que estamos desejosos de voltar
a estúdio para criar material novo.