No começo era o Kraftwerk.
É humanamente impossível
dissociar de qualquer coisa produzida eletronicamente nos últimos 30 anos a
influência desses alemães, que injetaram na música o conceito
"homem-máquina".
Beatles e Elvis à parte, nenhum
artista ou banda foi tão decisivamente importante para a evolução do mundo pop
quanto o Kraftwerk. Com a diferença de que este último permanece quase como um
enigma.
Criado em 1970 por Ralf Hütter e
Florian Schneider, o grupo alterou parâmetros ao utilizar sintetizadores e
computadores no processo de criação de música. Entre 74 e 81, produziu uma
seqüência de cinco álbuns ("Autobahn", 74;
"Radio-Activity", 75; "Trans-Europe Express", 77; "The
Man Machine", 78; "Computer World", 81) soberbos; dificilmente
encontra-se paralelo na história do pop.
Ainda assim, não é muito o que se
sabe sobre o hoje quarteto. Vêm de Düsseldorf, onde construíram o estúdio
KlingKlang. E são, Hütter e Schneider, fanáticos por ciclismo.
Raramente o Kraftwerk dá
entrevistas ou posa para fotos. No ano passado, o jornal britânico "The
Guardian" enviou repórter à cidade alemã para desvendar os segredos do
Kraftwerk. O jornalista passou dias no local, entrevistou moradores, donos de
lojas de disco e de artigos para bicicletas e... nada. Não conseguiu nem achar
o KlingKlang.
Em 2003, após hiato de 17 anos,
lançaram "Tour de France Soundtracks", disco-homenagem à competição
ciclística francesa. Pois o Kraftwerk está de volta. De volta ao Brasil, onde
realizou show histórico em 1998. Em 7 de novembro, o grupo toca no Tim
Festival, em São Paulo. No dia seguinte, se apresenta em Brasília.
E, na última quinta, Ralf Hütter
conversou com a Folha, por telefone, de Düsseldorf.
Há sempre uma expectativa em
torno do Kraftwerk. O que vocês estão fazendo?
Estamos finalizando a
remasterização do catálogo do Kraftwerk. E há três ou quatro semanas voltamos
de uma turnê. O último show foi em
Moscou.
Há planos para novo CD?
Claro. Mas primeiro vamos
terminar essas remasterizações, finalizar a arte, estamos escolhendo fotos
antigas. Acho que o resultado será muito bom. Depois trabalharemos em faixas
novas. Já testamos algumas. Estamos
experimentando.
Vocês tocaram no Brasil em 98.
Como será o show de 2004?
Foi uma experiência incrível em
98. Nós do Kraftwerk viemos de outro ambiente, mais industrial. A reação das
pessoas foi fantástica. O próximo show será de "Tour de France",
músicas que não costumamos tocar, teremos novos equipamentos, laptops,
elementos gráficos.
Vocês iniciaram o Kraftwerk no
final dos anos 60...
Em 1968. Eu e Florian montamos um
grupo chamado Organisation. Em 1970, montamos o estúdio Kling Klang e formamos
o Kraftwerk.
Vocês praticamente iniciaram a
música eletrônica como a conhecemos. Como você vê hoje esse tipo de música? Tem
orgulho do que ajudou a criar?
Sim, claro, vemos a reação das
pessoas pelo mundo. Na última turnê tocamos nos EUA, Canadá, Rússia, Eslovênia,
Hungria, países que nunca tínhamos visitado. Para nós isso é fantástico, a
linguagem eletrônica é universal, essa sempre foi a nossa missão.
A música de
hoje deve ser feita com as ferramentas de hoje. É a realidade de hoje, vimos
isso na tour pelo Japão e seis anos atrás no Brasil. Vocês têm uma música
acústica muito variada, mas mesmo assim a reação ao Kraftwerk foi muito forte.
Por que a música do Kraftwerk,
após 20, 30 anos ainda é considerada atual?
Acho que por causa das
composições... Nós fazemos como que uma música-filme e incrementamos com outra
energia. Por exemplo, "Autobahn" ou "Trans-Europe Express"
são como conceitos, não é apenas música nota por nota, faz parte de um contexto
sociológico...
Sobre os artistas e produtores de
hoje, você gosta?
Sim. Temos relações com o pessoal
do electro, gente de Tóquio ou Detroit. Nos levam para clubes, às vezes até
dançamos com nossos passos de robô...
O Kraftwerk é influência enorme
para artistas de hoje...
Pelo mundo dos sons. De carros a
trens a computadores, sons humanos, como batidas de coração, respiração, por
várias linguagens. Gravamos em alemão, em inglês, há letras latinas.
Trabalhamos na verdade com diferentes linguagens.
Você é conhecido pela paixão por
ciclismo. Como relaciona o ciclismo com o conceito "homem-máquina"
que vocês defendiam nos anos 70?
(O ciclismo) é uma representação
do homem e da máquina em harmonia. Guiando a bicicleta você deve utilizar o
corpo, a inteligência, a técnica. É o mesmo com a música. Você fica em harmonia
com seu corpo. Para nós é como um treino perfeito quando não estamos no
estúdio.
É verdade que
"Autobahn" é uma resposta a "Fun Fun Fun", dos Beach Boys
(pela mútua procura do perfeccionismo, o Kraftwerk já foi chamado de Beach Boys
de Düsseldorf)?
Não exatamente. A ideia daquela
música veio quando, no início do Kraftwerk, nós percorríamos muito uma autobahn
pela Alemanha, de universidade a galerias de arte, de cidade a cidade, e,
depois dos shows, voltávamos a Düsseldorf, pois não tínhamos dinheiro para
dormir em hotéis.
Viajávamos no meu Volkswagen e pensávamos: "Algum dia
alguém vai tocar nossa música num rádio de carro". Daí que veio o conceito
"Fahr'n fahr'n fahr'n auf der Autobahn" (dirigindo, dirigindo,
dirigindo pela super estrada; sonoramente, em inglês, é como "fun fun fun
on the Autobahn"). Naquela canção, os sintetizadores são como imitações do
motor de um carro, criando sons como os de um carro. É uma fantasia tecno...
Muita gente considera o Kraftwerk
uma lenda da música, dizem que vocês são mais influentes do que os Beatles.
Você tem idéia desse culto em torno do Kraftwerk?
Sempre pensamos em compor música
para o futuro. Sempre nos concentramos muito em nosso trabalho no KlingKlang.
Para nós isso é fantástico, pois, como disse antes, no começo tocávamos em
espaços pequenos e hoje viajamos o mundo com todo o nosso equipamento e vemos a
reação das pessoas.
O KlingKlang é como uma casa para
vocês...
É o nosso "laboratório
eletrônico".
E nesse laboratório eletrônico
vocês se afastam completamente do mundo: não têm telefone, fax, recepcionista,
não recebem correspondências... Por que vocês preferem manter o mundo afastado
do Kling Klang?
Porque é o nosso laboratório. Nós
fechamos as portas, o ambiente fica quieto e aí podemos nos concentrar apenas
na música, no projeto Kraftwerk. Hoje existe um problema sério: todos têm
celulares, ninguém consegue se concentrar. Então vamos ao estúdio, fechamos as
portas e, por algumas horas, mergulhamos fundo na música. Acho que isso é o
mais importante no Kraftwerk.
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