quarta-feira, 13 de abril de 2011

Fernando Abrantes - Entrevista 2003

Público: Como é que se deu a sua entrada no Kraftwerk?

Fernando Abrantes: A minha mãe é alemã, estudei engenharia de som sete anos em Düsseldorf e foi aí que conheci Fritz Hilpert, hoje um dos principais membros do Kraftwerk. Ele é também engenheiro de som, é responsável por "disparar" o computador central e toca percussões eletrônica no grupo. Éramos amigos e colaboramos em alguns projetos. Em 1991, já eu estava em Portugal, recebi um telefonema dele a perguntar-me se queria fazer um "casting" para substituir Karl Bartos, o teclista principal. Já tinha aqui a minha vida, tinha nascido a minha primeira filha, mas lá fui ter com eles. Pagaram-me um bilhete de avião, gostaram de mim e ficou decidido que iria integrar a formação do grupo na digressão por Inglaterra nesse mesmo ano.

O que fazia nessa altura em Portugal?

Era engenheiro de som e produtor independente. Quando recebi o telefonema estava a acabar de misturar a "Comédia Humana" dos UHF. Na Alemanha correu tudo bem, regressei, fiz as malas, e uma semana depois estava em Düsseldorf a ensaiar.

Ficou surpreendido com o convite?

Sim, porque não percebia porque é que não tinham encontrado ninguém na Alemanha. Depois percebi... São muito metódicos a funcionar, têm uma filosofia de trabalho própria e a inserção num projeto daqueles não é fácil. Começávamos a ensaiar às 10h e só acabávamos à noite. Têm uma vida regrada. São desportistas, nada de álcool, vegetarianos. Eram superprofissionais e muito bem organizados. Estivemos a ensaiar arduamente um mês e depois entramos em digressão.

Esses métodos de trabalho dificultavam a comunicação?

Um pouco. Com o Ralf e o Florian, também pelo fato de serem de outra geração, era mais difícil. Tinha de seguir uma espécie de protocolo. Durante a digressão, a atitude em cima do palco era imposta. Hoje dou-lhes razão, porque o projeto é assim, mas na altura tivemos algumas polêmicas. A forma de estar em palco é distante. Apesar de terem sucedido situações fantásticas como na Brixton Academy - cada um tinha o seu seqüenciador, íamos para a frente do palco e deixávamos o público interagir conosco.

Consta que, por vezes, atuava contra as diretivas que exigiam que estivessem imóveis e com expressões impassíveis em palco. É verdade?

Sim. Isso acontecia no "Pocket calculator", que era a música que levávamos nos seqüenciadores para a frente do palco. Eu era a pessoa que mais interagia com a assistência. Tinha a ver com a minha formação. Quando o público está a aderir, penso que o músico tem de comunicar com ele. Quebrar barreiras. Eles não gostavam e o Ralf chamou-me a atenção para não fazer determinadas coisas. A minha componente latina nem sempre foi compreendida... (risos).

Existia um conceito muito rígido de funcionamento, uma imagem a manter. Antes dos concertos era-lhe explicado os objetivos a atingir com essa atitude?

Sim. Não fui apanhado de surpresa. As coisas eram faladas abertamente. Tínhamos uma boa relação, apesar de algumas incompatibilidades. No final da digressão foi-me comunicado que iriam arranjar um outro tecladista - por acaso meu amigo, Henning Schmitz. Mas o que me impediu de continuar com eles foi o fato de eu ter a minha vida organizada em Portugal.

O Kraftwerk é um mito. Ao longo da digressão sentiu isso?

Sem dúvida e isso notou-se logo no primeiro espetáculo. Mal abriu o pano, a berraria foi tal que tivemos de pedir ao técnico para subir o nível geral do som. O som que havíamos experimentado no "sound-check" já não dava para nos ouvirmos em palco. A forma como éramos recebidos era indescritível.

Recorda alguma história engraçada desse tempo?

Uma vez perdi a mala - deixei-a no hotel. Já estávamos noutra cidade e em poucas horas resolveram-me o problema. É uma história que serve para ilustrar a excelente organização que nos rodeava. Tínhamos um excelente "tour manager", o Buckley, que na altura trabalhava com o U2. Todos os dias dava-nos um folheto com a informação necessária. Foi uma digressão exemplar em termos de organização. A equipa técnica era toda alemã e conseguia montar todo o espetáculo em hora e meia. E estamos a falar de um dos espetáculos mais sofisticados de sempre do ponto de vista técnico. Nada falhava. Quer dizer, quase nada... Recordo-me do computador central ter falhado uma vez, mas ninguém deu por nada... (risos).

Num espetáculo desse gênero existe espaço para a improvisação?

Algum, numa ou noutra música, mas era limitado, em termos de espaço e de seqüência. Essencialmente tocava as linhas de baixo, fazia toda a parte harmônica e os solos. O Ralf, essencialmente, cantava. O Florian comandava tudo o que tinha a ver com caixas de ritmos e efeitos especiais. E o Fritz, nessa altura, tocava percussões eletrônicas e lançava tudo o que tinha a ver com o computador central.

Criou-se a idéia de que aquilo que impedia o grupo de produzir coisas novas era o fato de estar a realizar um trabalho minucioso de reconversão do material analógico do passado para o formato digital do presente. Teve essa percepção?

Tive. Recordo-me que, quando entrei, tinham acabado de fazer o "The Mix". Assisti a algumas sessões - nomeadamente a remisturas que foram feitas pelo William Orbit. O Fritz mandava o DAT para Londres - com as pistas separadas -, mas a aprovação final era deles. Num caso, o Orbit esteve duas semanas à volta de uma remistura até que eles aprovassem o seu trabalho. São exigentes e sabem o que é que querem. Não querem fugir de uma linha pré-definida.

O que têm feito desde o álbum "Computer World", de 1981, é atualizar a música do passado através das novas tecnologias, não lhe parece?

Sim, mesmo em termos de composição, não existem grandes revoluções. O que evoluiu é a qualidade sonora. Todos os discos continuam a ter uma temática. Para lá da eletrônica, existe uma grande atenção àquilo que é cantado. A letra não é um acessório.

Os espetáculos ao vivo são sofisticados em termos de som-luz-imagem. Em termos de organização, quantas pessoas os acompanhavam?

A equipa técnica - iluminação, manutenção, som - eram cerca de 15 pessoas. Acima de tudo, existia uma grande organização. A equipa viajava sempre numa camioneta preparada com camas, sala de jogo, vídeo, casa de banho, porque os espetáculos eram seguidos. Tínhamos dois cozinheiros alemães com forno industrial. Eram os primeiros a entrar nas salas para montarem os "buffets" logo de manhã. O que prova que, apesar de toda a tensão inerente a uma digressão, se as coisas forem bem organizadas, as pessoas sentem-se bem.

Ralf Hütter têm uma paixão por bicicletas, daí terem composto o tema "Tour de France" e agora lançarem um álbum alusivo à prova. Diz-se que nas digressões aproveitavam para andar de bicicleta. É verdade?

É verdade. A única coisa que não fiz com eles foi andar de bicicleta... (risos). Não me interessava. No fim-de-semana, havia sempre uma viagem de bicicleta para fazer. Cerca de 200 quilómetros. Juntavam-se os três e lá iam eles. Era o seu passatempo preferido. Eu preferia o meu tênis ou o meu pingue-pongue.

Os estúdios Kling Klang, em Düsseldorf, são apresentados muitas vezes como uma espécie de fortaleza impenetrável, sem qualquer comunicação com o exterior. É um mito?

É impenetrável. Poucas pessoas entraram ali. Apenas alguns músicos e amigos. Era nos estúdios que ensaiávamos. Mas eles não gostam de se mostrar, faz parte da sua filosofia. O Florian nas digressões é até um pouco complicado porque passados dois dias já sente saudades de casa.

Para essa digressão de 1991, foram concebidos robôs-réplicas de cada um dos membros do grupo. Também fizeram uma sua?

Sim. Era engraçado ver a minha cabeça-de-robô na imprensa... (risos). Fazia parte da concepção do espetáculo. Era impressionante como aquilo funcionava porque os robôs eram tratados com extremo cuidado. Foram feitos por uma empresa italiana que conseguiu, via MIDI, que todas as articulações pudessem ser comandadas por computador. O auge do espetáculo era quando o pano caía, as pessoas ovacionavam em histeria total e, depois, abria-se novamente o pano. As quatro telas onde eram projetados vídeos - que se encontravam atrás de nós - levantavam-se e, por detrás, surgiam quatro robôs a mexer-se. Era assim que acabava o concerto. A presença deles em palco evoluiu muito, entretanto.Hoje, utilizam computadores portáteis e teclados, o que deve facilitar os movimentos.

O Kraftwerk é adulado pelas novas gerações eletrônicas, mas também parecem estar atentos ao que se vai fazendo na atualidade. Sentiu isso?

São muito atentos. Depois dos ensaios, à noite, combinávamos com o Ralf deslocações a discotecas. Locais que passavam música eletrônica. Íamos só para perceber o que se andava a ouvir. Mas, na minha opinião, nunca se deixaram influenciar. Mantiveram-se fiéis ao seu modelo.

Diz-se que os concertos, pelo fato de serem raros, são uma grande fonte de rendimento, ao mesmo tempo que reativam o interesse sobre o fundo de catálogo do grupo. Teve essa noção?

Não. A sua maior fonte de rendimento é a autoria. Quando "The Model" esteve em 1º lugar no top dos EUA, ganharam bastante dinheiro. Mas também é verdade que não são pessoas pobres... Podem-se dar ao luxo de parar durante um tempo. O Fritz, por exemplo, tem uma avença mensal, independentemente de existirem espetáculos ou gravações. Existe cuidado para todas as pessoas se sentirem satisfeitas.

Numa entrevista recente, Wolfgang Flür, um ex-Kraftwerk, declarava com ironia que, apesar da imagem distante que cultivavam, eram abordados pelas fãs como acontece com qualquer outro grupo pop. É verdade?

Aí vou ser mauzinho. As únicas pessoas que eram abordadas, e às vezes de forma insistente, era eu e o Fritz. Os outros dois não saíam dos camarins. Não fazíamos de propósito, mas acontecia. Não era tentativa de protagonismo, eram as circunstâncias do momento. E isso não agradava a toda a gente. Existiam fãs que nos acompanhavam por todo o lado e era engraçado perceber que a sua música agradava a diversas gerações. Depois dos concertos, quando nos convidavam para sair, era uma festa. Em Inglaterra éramos tratados como deuses.

Continua a manter qualquer tipo de contacto com os Kraftwerk?

Com o Fritz. Somos amigos. Ele passa férias em minha casa. Com os outros tenho uma relação mais distante. Falamos apenas, ocasionalmente, ao telefone. Mesmo quando estive lá nunca consegui afeiçoar-me a eles.

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